Hábito da leitura abre portas

por Regina Wielenska

Dou aula no ensino superior, graduação, formação e especialização desde 1989. Na minha área, Psicologia, produzir textos é atividade fundamental dos estudantes e profissionais. Monografias, relatórios, laudos, trabalhos para disciplinas de curso, e outro tanto de atividades requerem a habilidade de articular as palavras com coerência, precisão e respeito à norma culta e aos ditames da redação científica.

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Nunca deixo de me surpreender: vejo alunos, já adultos, cursando especializações, por exemplo, que são incapazes de escrever um texto de qualidade. Traz e trás, ouve e houve, a fim e afim…  Estes pares são apenas uma amostra mínima do pântano ortográfico em que esses jovens profissionais estão mergulhados. Os equívocos vão bem além da ortografia, separam sujeito do predicado usando vírgula, escrevem parágrafos enormes, sem pausa para um respiro, sem a ousada elegância de Saramago.

Eu poderia me estender demasiadamente mencionando os problemas que constato, mas julgo já ter deixado clara a imensa variedade de equívocos frequentes nos materiais que examino.

Qual a origem de tanta dificuldade?

A maioria dos alunos cursou o ensino superior em instituições que exigem pouco deles, os professores não se preocupam em examinar a fundo a produção de cada aluno, há poucos trabalhos escritos autorais, faz-se uso de apostila resumida e não de textos originais.

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Pensadores importantes da Psicologia, como Skinner, Freud, Piaget e muitos outros, exigem do leitor tempo, dedicação e habilidade de interpretar textos (cada um com seu estilo próprio) e fazer a ponte entre o que se observa no mundo ao redor e o que propõe cada autor, em sua devida época. Um aluno que trabalha oito horas por dia, sacoleja no transporte público por cerca de três horas diariamente e cursa faculdade noturna, incluindo os sábados, como vai arranjar tempo, meios e forças para recuperar seus déficits?

No ensino fundamental e médio, em escola pública, fui solicitada a fazer um sem-fim de redações, e todas eram corrigidas detalhadamente. O feedback deixava claro o acerto e também o erro. Solicitavam que refizéssemos o texto, se julgassem necessário. Desse modo, meus colegas e eu conseguimos chegar à universidade com habilidades sólidas para darmos conta de parte das demandas acadêmicas. Adicionalmente, na mesma época, fomos expostos a muitos autores, alguns enfadonhos, outros estimulantes. Mas tínhamos que dar conta de ler tudo e entender o conteúdo e contexto circundante das obras, com a ajuda dos professores.

Aos 17 anos, terminando o ensino médio, tínhamos aprendido o valor dos livros, sabíamos interpretar textos de diversas origens, nos expressávamos com razoável clareza e acerto na forma escrita e isso nos abriu portas.

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Quando a paciente de um supervisionando meu lhe diz na sessão de terapia que se sente uma balzaquiana, meu aluno titubeia. Não sabe a que a cliente se refere. Para alguns alunos, Big Brother é apenas um problema de televisão, desconhecem a obra 1984 de George Orwell. Ler romances, ver peças de teatro e filmes, essas atividades nos ensinam muito sobre a condição humana, nossos padrões comportamentais, conflitos e soluções. Quem lê mais geralmente ganha alguma flexibilidade para analisar situações sob diferentes ângulos entende me.

O aluno não tem culpa se lhe venderam a ilusão do ensino superior e ele comprou. O problema é que o mercado de trabalho é cruel, só passa em concurso uma elite de indivíduos muito bem preparados, e algo similar ocorre em outros contextos do universo profissional fora do serviço público. No caso da Psicologia clínica ainda se espera que o cliente esteja consciente de seus valores, conflitos, problemas interpessoais e similares, de forma a não misturar suas questões pessoais com a do cliente que atende. Evitar a mistura requer a ajuda de psicoterapia, uma atividade que consome tempo e algum recurso financeiro da parte do profissional em formação.

Mas boa parte do problema parece começar na infância e adolescência, ler mal e ler pouco gera pessoas despreparadas para se colocarem na vida com propriedade e reduz as chances de sucesso. Cabe às famílias e educadores tentar uma prevenção maior de tantos casos desoladores, surreais até, de profissionais pouco habilitados para o pensamento crítico, comunicação escrita e leitura com compreensão.

E olhe que nem me referi às habilidades matemáticas básicas, outro problema de monta na educação contemporânea no Brasil. Sinceramente, ando desolada e aceito doses de esperança. A despeito de tudo, vejo meus colegas desempenhando-se com a maior seriedade possível e neles me inspiro.