O engano da tolerância zero

por Angelina Garcia

Depois de se despedir do grupo que viera de longe conhecer o melhor da gastronomia paulistana, Lúcia correu para o circular que a deixaria há três quadras de sua casa. Quase não conseguiu entrar de tão cheio. Embora gostasse do seu ofício, no final de um dia de trabalho guiando turistas, já se encontrava cansada demais para achar graça do puxão de cabelo. Olhou para trás e não resistiu ao sorriso da criança no colo da mãe.

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A senhora segurava uma sacola em um dos ombros, enquanto o bebê se debruçava sobre o outro, tentando alcançar o que pudesse. Claro que a mãe se desequilibrava ainda mais. Lúcia olhou feio para o rapaz sentado a sua frente. “Como pode? Ainda finge que não está vendo a pobre da mulher”.
 Este era o tipo de coisa que ela não tolerava. Esbravejou:

– O cavalheiro pode ceder seu lugar para a mãe com a criança no colo?

O moço até tentou um sorriso amarelo, enquanto se esforçava para erguer o corpo. Sentou-se de novo.

Lúcia já abria a boca para soltar sua indignação, quando foi interrompida pela senhora idosa do banco detrás.

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– Desculpe, moça, mas estamos vindo do hospital. Meu neto passou por uma cirurgia difícil. Na hora que recebe alta, não conta com um parente para deixar a gente em casa, nem temos dinheiro para o táxi.

Sem nos esquecermos que o tema se estende a questões sociais mais amplas, e considerando que Lúcia teve razão ao indignar-se com a situação, podemos aproveitar seu constrangimento para pensar nosso limite de tolerância.

Quantas vezes enrijecemos nosso ponto de vista antes de conhecer os motivos do outro. Se esperamos que o filho chegue tal hora e ele se atrasa, não penso no que poderia levá-lo a se atrasar, mas no mal que a sua demora me causou. Se chego antes do meu funcionário, o que vejo é minha mesa de chefe desarrumada e não o porquê de seu atraso. O limite de tolerância estaria, assim, associado àquilo que suporto em termos de frustração.

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O sentido de tolerância normalmente vem associado à capacidade de perdoar, de ser complacente, indulgente; enfim, de exercitar a bondade. Fica a idéia de que o outro errou, quando deixou de fazer aquilo que se esperava dele. É querer que o outro veja aquilo que estou vendo. De alguma forma, é sentir-se dono da verdade.

Pensar o limite de tolerância não significa jogar fora convicções, nem encontrar sempre uma desculpa para os deslizes alheios. É agir, sim, frente ao que consideramos injusto, mas tentando olhar o fato com a maior isenção possível, e não tomados pela emoção que ele nos provoca, embora seja essa mesma emoção o que nos mobiliza a agir. É uma linha tênue que precisamos perceber, para não cometermos injustiça maior, tentando ser justos. É um esforço para enxergar além do que vemos.