Criança leva ao pé-da-letra muito do que ouve

por Luís César Ebraico

Atendi uma paciente de seus trinta anos que, entre várias queixas, tinha a de sentir câimbras na mão, que estavam se tornando cada vez mais fortes, quando se punha a escrever. Durante a análise, lembrou-se do seguinte episódio, até então de todo esquecido:

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Quando Marília – chamemo-la assim – tinha por volta de 4 anos, sua mãe, ao passar pela sala, viu-a sentada no chão, rabiscando alegre e abundantemente a agenda de trabalho do pai. A mãe não lhe bateu. Apenas aproximou-se dela, tirou-lhe a agenda das mãos e profetizou:

MÃE: – Minha filha, seu pai vai te matar!.

Em seguida, voltou para seus afazeres. Marília foi para o seu quarto e agachou-se em um canto. Tinha tomado à letra as palavras da mãe e ali ficou, petrificada, esperando a morte que ocorreria quando seu pai chegasse. Não ocorreu. Continuou esperando no dia seguinte. Não ocorreu. E no dia seguinte e no dia seguinte… Aos poucos deixou de esperar conscientemente o ataque do pai, mas havia-se transformado de uma criança extrovertida e leve em uma criança introvertida e pesada.

A partir do resgate dessa memória – e do de outras experiências de medo que enfrentou – suas câimbras começaram a regredir até desaparecerem de todo, juntamente com outros sintomas – mormente de natureza claustrofóbica – que não analisarei aqui porque, hoje, meu objetivo é apenas ilustrar a extrema concretude que a escuta infantil pode atribuir a palavras que nós, adultos, empregamos em um sentido meramente figurado. Saber disso pode nos fazer evitar, em nossas comunicações com as crianças, determinados tipos de comentário. Exemplifico.

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Quando ministrei uma série de palestras sobre Loganálise para o corpo docente de um CIEP situado em uma área extremamente conturbada do Rio, onde pais e mães, tratam seus filhos com extrema rudeza e violência, uma professora relatou seguinte diálogo, mantido com um menino que, no terreno baldio que circunda a escola, ela encontrou ajoelhado, ao lado de um cavalo, segurando uma de suas patas dianteiras, tentando fazê-lo com ela rabiscar o chão:

PROFESSORA: – Que é isso que você está fazendo, menino!

JOÃO: – Estou tentando ensinar este cavalo a escrever.

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PROFESSORA: – Meu filho, animal não escreve!

Eu sabia que o menino estava enfrentando dificuldades em seu processo de alfabetização e confesso que não consegui escapar, dada a concretude da escuta infantil a que acabamos de nos referir, à não tão mirabolante hipótese de que, no ambiente inóspito em que vivia, frente a suas dificuldades de aprendizagem, aquela criança já teria ouvido algum comentário como "Você é um animal! Nunca vai aprender nada!" e que tentar "alfabetizar" o cavalo era uma tentativa original, não obstante canhestra, de testar se – ou de provar que – "animais" também aprendem a escrever. Essa minha hipótese pode ser uma grande bobagem e servir apenas como mais uma ilustração da aludida concretude. Mas ainda assim, por via das dúvidas, eu não lhe teria dito o que lhe disse a professora…

Esta coluna se propõe a relatar experiências sobre o poder da palavra em nossas vidas. Aqui serão relatados dezenas de fragmentos de diálogo – reais ou fictícios – segundo os pontos de vista da Loganálise, mostrando onde e como esses diálogos apresentam elementos favoráveis ou desfavoráveis ao estabelecimento de uma comunicação sadia. *A Loganálise é um filhote da Psicanálise: pretende mostrar como o cidadão comum, em seu dia-a-dia, pode tirar proveito de conceitos como repressão, fixação, trauma e outros para promover sua própria saúde psicológica e a daqueles com quem se relaciona.