Por que eles batem nelas?

por Roberto Goldkorn

O sujeito batia com a cabeça numa parede de forma rítmica e sistemática. Uma senhora idosa, do tempo em que as pessoas se importavam com os outros, passou e interpelou o rapaz: 'Meu filho por que você está fazendo isso? Não dói?'

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"Dói sim senhora, mas quando eu paro é tão bom…"

Essa fabuleta urbana, ilustra muito bem o que se passa com muitas mulheres maltratadas pelos 'parceiros', vítimas sistemáticas de perversos e covardes. As mentes mais racionais, diante de depoimentos de mulheres que sofrem ou sofreram maus-tratos ficam entre a incredulidade e a revolta – com as vítimas – por não terem tido o mínimo de instinto de sobrevivência (alguns até dizem que é "falta de vergonha na cara"), e pulado fora da relação. Admito que para os não 'iniciados' essa é uma realidade de difícil compreensão, mas uma série de circunstâncias mórbidas contribuem para que a análise e o julgamento não possam ser tão simplistas.

Uma moça que apanhou sistematicamente de seu marido, explicou porque não se separou logo de início: "Na primeira surra que ele me deu, fui parar no hospital com a cabeça quebrada. Ele mesmo me levou para lá. Quando acordei, ele estava do meu lado, chorando feito criança. Segurando a minha mão com força, sussurrava no meu ouvido: "Perdão, meu amor, perdão minha menina, isso nunca mais vai acontecer, eu te amo mais que tudo. Prefiro me matar a levantar a mão contra você de novo." Quando o médico perguntou como eu havia me machucado, eu inventei que cai e bati com a cabeça numa pedra. Fiquei até feliz em ouvir ele dizer aquelas coisas tão bonitas, e tive até pena dele… Mas não durou muito, algumas semanas depois ele me deu outra surra, e depois outra, fora os xingamentos onde ele me botava abaixo de zero." Mas sempre havia um arrependimento, sempre um "eu te amo" e outros "Por que você me obriga a fazer isso com você?" No fim a vítima acaba achando que é ela a disfuncional, e que quem sabe talvez até mereça mesmo aquilo tudo.

Quando no meio do massacre surgem os filhos, a dependência financeira, o isolamento (muitas vezes construída de forma estratégica pelo perverso), e o medo da morte (ou de ofensa às crianças) a coisa toda fica bem mais complicada, ainda que não justifique a permanência da vítima na relação. A meu ver o grande vilão desta história é a cultura do amor romântico, alimentada pela carência afetiva e pela ignorância, que desde a Antiguidade correlaciona amor com sofrimento, ou por outra via, a redenção através do amor de sofrimento.

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Uma jovem cliente, espancada e humilhada pelo namorado, insistia comigo numa pergunta absurda: "Mas você acha que ele ainda me ama?" Essa obsessão de algumas mulheres (de alguns homens também) em justificar tudo, do sangue derramado às lágrimas, em nome de um sentimento que julgam ser amor, é em geral a via expressa para os relacionamentos misóginos, independente de cultura e de classe social.

Na Suécia, país aonde as mulheres chegaram ao poder mais que em qualquer outro, o índice de maus-tratos é altíssimo, (o segundo da Europa, só ficando atrás de Portugal). Nos EUA, a estatística é que uma em cada quatro mulheres é maltratada por seus parceiros. Isso coloca por terra a tese de que esse tipo de coisa é fruto do subdesenvolvimento, da pobreza ou da má distribuição de renda. Insisto: é a cultura do "amor que tudo pode, que a tudo resiste, que supera todos os obstáculos", o maior vilão da história e essa cultura é quase como um mandamento religioso, que cobra delas o sacrifício, e acena com a redenção através do suplício amoroso.

Do lado do agressor vislumbro a impotência, a covardia, o medo e a fraqueza como principais motivadores. Acredito que a re-educação um dia vai poder mudar esse quadro, mas ainda vai demorar muito. Enquanto isso a única solução está na sociedade aprimorar os instrumentos de proteção à mulher, e tornar as leis contra os abusos mais coercitivas. É preciso que o perverso saiba que está cometendo um crime, que esse crime é grave, é hediondo, e que ele pode pagar um preço alto (sua liberdade) por isso. Combater a cultura do amor infantilizado, criar mecanismos de proteção à mulher, e ser implacável com o agressor, essa deve ser a mobilização social para mitigar essa vergonhosa epidemia que assola nossa sociedade.

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