Acabou de separar? Atual caos de São Paulo explica

por Luiz André de Bastos

Vivemos em tempos de caos: incertezas, violências, falta de referências, políticas abusivas, políticos mais abusivos ainda. Este é o retrato de nosso cotidiano. Retrato parcial é verdade mas, que por suas próprias características, é parte evidente da imagem que compõe nossa cidade.

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Nossa bela metrópole, pólo cultural e econômico nos apresenta, em toda sua plenitude e força, os sinais do abuso e descaso de anos. E de modo análogo nossas relações amorosas atuais, como a velha metrópole, apresentam evidentes sinais de crise apontando de forma pungente a falência do modelo tradicional de união: o casamento. O amor está em crise! A cidade está em crise! Qual o nosso papel diante desta realidade?

Recentes acontecimentos nos colocaram em alerta. Após 15 horas de chuva, a cidade de São Paulo entrou em colapso. E isto não é mero recurso estilístico. A cidade parou. As principais vias de acesso à cidade foram interditadas pelos sucessivos alagamentos; árvores caídas pelas ruas e sobre os carros; casas invadidas brutalmente pelas forças pluviais; sistemas viários inteiros ficaram abarrotados de carros em todas as direções numa tentativa estéril de se desvencilhar do poder da cidade em revolta. Os efeitos perduraram até o dia seguinte com cenas de cidadãos tentando resgatar o que fosse possível das lamacentas memórias do caos que se instalara.

Separações

Matéria publicada pela Folha de S. Paulo mostrou uma nova realidade no que se refere aos relacionamentos amorosos. O número de casamentos vem se mantendo o mesmo no período compreendido pela última década enquanto, no mesmo período, o número de divórcios cresceu de modo exponencial. Em outra reportagem, a Folha chama a atenção a uma diferente modalidade de separação: a dissolução ou anulação de casamento. A reportagem elucida que nestes casos, o processo se dá com menos de um ano de união formal e um dos pré-requisitos é definir algum tipo de incompatibilidade entre os cônjuges: adultério, incompatibilidade de gênios, doenças pré-existentes, entre outras.

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O que percebemos é que o desejo pela união formal (casamento) não se compatibiliza com a realidade das relações. Ou seja, o casamento tem se configurado como uma tarefa muito grande para a disposição atual de nossa sociedade. E, mais uma vez, a pergunta se apresenta: qual nosso papel diante de tal realidade?

A atitude consciente coletiva de nossa atualidade ao responder a referida pergunta é altamente defensiva: "Não tenho nada a ver com a crise da cidade! É responsabilidade do poder público se haver com as questões de desenvolvimento metropolitano!" De modo análogo: "Não tenho nada a ver com pessoas que se separam! Isto é problema de cada um!" E, cada vez mais, nossa vida em sociedade vai se tornando um aglomerado de interesses privados, que se relacionam à medida que uma privacidade invade a outra.

Explico melhor: não nos importamos com o desenvolvimento da cidade, seu planejamento urbano, suas políticas públicas, suas áreas desassistidas até o momento em que a violência e a desorganização batam à nossa porta – ou apresentam uma arma carregada e exigem aquilo que é nosso. Aí, porém, é muito tarde. Só nos resta nos ocuparmos das conseqüências de vivermos numa metrópole caótica.

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Com relação aos relacionamentos íntimos, algo muito similar se apresenta: não nos preocupamos em discutir a qualidade de nossas relações até que o inevitável desgaste se configure. E, diante deste fato, cansamos de discutir a relação e optamos pelo fim da mesma. Ou seja, enquanto o relacionamento provê aquilo que desejo, me mantenho nesta relação. Quando o relacionamento passa a exigir flexibilidade, aceitação das diferenças, desenvolvimento de nossos papeis dentro da relação, o trabalho parece muito grande. Então, através de um mecanismo regressivo, procura-se nos relacionamentos um oásis repleto de promessas e nenhum comprometimento.

O que se propõe aqui é uma reflexão ética do nosso papel diante daquilo que extrapola nosso contexto individual. A relação com a cidade, então, passa a ser um modelo de relação da mesma ordem de relacionamento amoroso. Esperamos, nestas duas relações, aquilo que nos satisfaz: um belo apartamento, seguro, impenetrável, com bom acesso para automóveis, com muitas vagas na garagem e elevador privativo. Esperamos simultaneamente um relacionamento que seja "perfeito", onde só haja felicidade, diversão, fim de frustrações e complicações; onde não haja esforço, apenas compreensão incondicional do outro em relação às minhas necessidades; onde se espera do outra infinita flexibilidade, de modo que, enfim, nos sintamos completos, ou melhor, completos pelo outro.

À medida que nos afastamos do coletivo estamos num movimento de individualismo. Procuramos a satisfação irrestrita e irrefletida de nossos desejos em detrimento da existência alheia. Me preocupo com a limpeza de minha calçada, mas utilizo quantidade exorbitante de água; quero me casar com determinada pessoa, mas não quero deixar de lado o estilo de vida de solteiro; quero passagem no trânsito, mas me recuso a dar passagem a outro; quero que aceitem minha diferença, mas não aceito o diferente no outro. Exemplos não faltam. E o fato que se apresenta é o seguinte: nós caminhamos para o individualismo. E qual é o nosso papel diante de tal realidade?

O papel que nos resta diante desta realidade é o caminho da individualidade. Sob um primeiro olhar, individualismo e individualidade podem soar como sinônimos. Pelo contrário, estão mais para antônimos: enquanto sob o individualismo buscamos a satisfação plena e inconseqüente de nossas realidades e desejos, a perspectiva de individualidade é a de buscarmos, dentro de um processo ético e comprometido de reflexão, o autoconhecimento, através do qual integro aspectos diversos à minha consciência. Em outras palavras, vivo a minha vida em sua plenitude de sentidos, aceito tanto os acertos como os erros, tanto a saúde como a doença, tanto a luz como a sombra. Porque, a partir da percepção de que não somos tudo aquilo que pretendíamos ou gostaríamos de ser, podemos aceitar tanto as nossas idiossincrasias como aquela que é alheia a nós. E dentro desta perspectiva, podemos, finalmente, sermos indivíduos (e não individualistas).

Portanto, ao nos depararmos com a crise de nossos sistemas de relacionamento (a cidade e o amor) nos propormos à uma reflexão de caráter pessoal, levando em conta nossas características totais: defeitos e qualidades. E da mesma forma aceitar uma dinâmica análoga aos nossos pares. Pois então, será o momento em que poderemos nos relacionar, de fato, com o outro e não com uma projeção daquilo que eu espero, neuroticamente, do outro. E poderemos então conviver numa cidade, e não impor nossos desejos à força de carros blindados, edifícios à prova de roubos e bairros higiênicos, onde a sujeira é varrida para baixo de nosso tapete.