Passos da arte de tornar-se

por Monica Aiub

No artigo anterior, Qual o papel do filósofo clínico na criação da existência como uma obra de arte?clique aqui e leia. apresentei o filósofo clínico como aquele que “possui o papel de provocar a pessoa a observar-se e a constituir-se numa construção constante, uma obra de arte, cujo autor e intérprete é a própria pessoa”.

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Dessa ideia, surgiram algumas questões: Como isso ocorre nos consultórios de filosofia clínica? Como se dá o processo de construção de si mesmo? Ao respeitar a singularidade, não se tornaria um trabalho subjetivista, podendo levar a pessoa a construir uma “realidade paralela”, desconectada do real?

Iniciemos pelo primeiro ponto:

Como isso ocorre nos consultórios de filosofia clínica?

Quando afirmo que um elemento fundamental no trabalho dos filósofos clínicos é o respeito à singularidade, e que isso significa que cada pessoa é única, com isso também afirmo que o partilhante – que assim é chamado justamente por partilhar suas questões, sua história, seus processos –, como um ser singular e autônomo, poderá constituir-se a partir dos processos clínicos.

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Conforme já descrito em outros textos, o primeiro passo é o Assunto Imediato, a questão que o partilhante apresenta na clínica, o motivo que o levou a procurar a terapia. Como o “voo da coruja de Minerva”, símbolo da filosofia, o filósofo clínico realiza um “voo panorâmico”, tentando situar as questões trazidas pelo partilhante em contextos mais amplos. Obviamente, quem traça os contextos é o próprio partilhante, e esse, ao traçá-los para o filósofo clínico, acaba por observar os contextos de suas próprias questões.

Trata-se, portanto, de provocar a pessoa a observar suas questões singulares, a partir de seus modos de vida singulares, em contextos mais amplos, nos quais esses modos de vida acontecem e suas questões se inserem. Nesse primeiro momento da clínica, o objetivo é traçar o panorama da questão, é compreender os contextos nos quais ela surgiu, seu processo de constituição e suas implicações em outros fatores da existência do partilhante.

Observe que não se trata de isolar o partilhante de seus contextos, de compreendê-lo de modo subjetivista, pois o filósofo clínico pretende observar a singularidade do partilhante na coletividade na qual ele se insere. Interessa conhecer como a pessoa se tornou o que é, como ela interpreta o vivido, situando-se no mundo e interagindo. Interessam as relações.

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Para compreender o partilhante e seu universo, o filósofo clínico necessita acompanhar seus movimentos (clique aqui e leia), e para tal pede ao partilhante que relate sua historicidade, a partir da qual observará as movimentações. Novamente, ao contar sua historicidade, o partilhante poderá observar a si mesmo e seus contextos, compreendendo elementos de sua constituição e as articulações que geraram seus modos de vida, suas inquietações, suas necessidades e possibilidades.

Observe o papel do entorno na pesquisa. O partilhante é provocado a olhar não apenas para si, mas para o mundo que o rodeia, para as relações que constitui, para os ambientes que frequenta, e outros tantos aspectos dos denominados Exames Categoriaisclique aqui e leia Iclique aqui e leia II Através das categorias, o filósofo clínico aproxima-se de dados sobre a realidade da pessoa, podendo provocá-la a estudar essa realidade em busca de elementos para a construção de si mesma e do mundo circundante.

Quando nos movimentamos, movimentamos o mundo à nossa volta, ainda que seja por reverberação, e o contrário também ocorre: movimentações no entorno, no mundo à nossa volta, provocam movimentações em nós. Se tais movimentos ocorrem sem que os percebamos, sem que os compreendamos, é possível que estejamos nos constituindo a partir de hábitos arraigados que, por não serem avaliados, podem reproduzir-se, replicar-se, ainda que não nos sejam benéficos, ou pior, ainda que gerem dificuldades, problemas, impossibilidades a nós. Somos movidos pela corrente, nossos movimentos são automatizados, somos, como diriam os gregos na Antiguidade, levados pelo “rio do esquecimento”.

Ao olhar para si mesmo e para seu entorno, o partilhante poderá perceber elementos que necessita fortificar, outros que precisa suprimir, ou ainda, alguns que necessitam ser articulados. Mas isso não significa que o fato de ter observado o tenha levado à compreensão, e menos ainda que o compreendido venha a provocá-lo ao movimento.

Você habitualmente observa seus movimentos? Consegue identificar os elementos de seu contexto que lhe provocam a movimentar-se? Ou é movido pelas circunstâncias? Você consegue observar a si mesmo e ao mundo e, a partir de tal observação, compreender o que se passa e criar formas para lidar com suas questões? Ou está preso a automatismos dos quais sequer tem percepção? Se você se observa, com que frequência faz isso?

A filosofia, na Antiguidade Clássica, teve o papel de não permitir ao ser humano “cair no rio do esquecimento”, levando exatamente ao questionamento dos padrões estabelecidos, das formas prontas, e buscando a constituição de formas de vida compatíveis com suas necessidades, pautadas nos dados observados na natureza e no ser humano. Manter-se acordado, não cair no rio do esquecimento, esta é a tarefa do filosofar.

Na continuidade dos procedimentos clínicos, os processos divisórios buscam mais dados, mais elementos. Um “sobrevoo da coruja”, em geral, é insuficiente para que compreendamos nossos processos de modo mais profundo. É preciso investigar mais. E as formas para proceder a investigação são variadas. Aqui a criação já se faz necessária.

Do ponto de vista didático, basta dividir a historicidade contada e pedir para a pessoa contar em trechos menores, com mais dados. Mas isso nem sempre é suficiente para a pesquisa. Outras formas de expressão podem se fazer necessárias. Fotos, músicas, pinturas, desenhos, textos, diários, cartas, blogs, filmes… o que utilizar? Divisão por datas, temas, eventos, de trás para frente, em blocos… como dividir? Depende do partilhante, depende dos dados que ele traz no momento em que conta sua historicidade pela primeira vez.

Filósofo clínico parceiro

Outros veículos de expressão presentes devem ser pesquisados, pois poderão ser formas para construir o trabalho subsequente. A estrutura de formulação das questões deve ser, também, compatível com a estrutura do partilhante. Ou seja, o filósofo clínico recolhe os dados que se apresentam e os pesquisa, como o artista pesquisa os vários materiais com os quais comporá sua obra. Interessante observar que, não se tratando da obra do filósofo clínico e sim do próprio partilhante, o filósofo clínico se coloca como parceiro de pesquisa, provocando a investigação.

Contudo, o objetivo é levar o partilhante a se apropriar do conhecimento dos elementos presentes em si e em seu entorno, para que ele possa constituir a si mesmo a partir destes. Às vezes é preciso buscar ou criar novos elementos, pois os existentes não são suficientes para as necessidades da pessoa.

Além dos elementos para constituir-se, é preciso encontrar as formas para articulá-los. E isso, muitas vezes, exige exercício, exige prática, constituição de novos hábitos. Novamente, o filósofo clínico poderá auxiliar a pessoa a pesquisar formas possíveis, provocá-la ao exercício necessário à constituição de si mesma.

Também é papel do filósofo clínico observar quando a pessoa, ao utilizar as formas, une elementos que associados dessa maneira poderão gerar problemas graves a ela. Nessa observação cabe apenas levantar pontos, que surgirão não da subjetividade do filósofo, mas dos dados observados nos Exames Categoriais. Seu papel, repito, é alertar a pessoa para as possíveis consequências de seu fazer, de sua criação; e não definindo o que deve ou não ser feito, do que deve ou não ser criado.

Poderíamos, assim, resumir os passos da arte de tornar-se em pesquisar a si mesmo e o universo que o rodeia, buscando não apenas a gênese para a compreensão daquilo que se é, mas também os elementos e suas possíveis articulações para tornar-se. Considerando que o tornar-se promoverá movimentos não apenas internos, mas também no universo circundante, podemos pensar num tornar-se em devir.

Assim sendo, o papel do filósofo clínico, longe de ser aquele que promove a separação, o desconectar-se do real, é acompanhar a pessoa em sua construção, provocando-a a olhar para a realidade na qual se insere, e a encontrar, nesta realidade, os elementos para modificar a si mesma e ao mundo ao seu redor. Em outras palavras, o amigo com quem se partilha a construção, sem que a partilha leve a perder a autoria da obra.

Para saber mais:

AIUB, Monica. Como ler a Filosofia Clínica: Prática da autonomia de pensamento. São Paulo: Paulus, 2010.
_____. Para entender Filosofia Clínica: o apaixonante exercício do filosofar. 2 ed. Rio de Janeiro: WAK, 2008.
www.institutointersecao.com