Mãe dependente química deve ser internada junto com a criança?

por Danilo Baltieri

"Trabalho num Centro de Recuperação de Dependentes Quimicos. Esta semana nos procurou uma mulher, dependente química de drogas (crack), com um filho recém-nascido há 15 dias. Psiquiatricamente é viável interná-la para tratamento junto com a criança?"

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Resposta: Esta pergunta requereria uma resposta bastante longa, já que envolve vários aspectos médicos, éticos e jurídicos.

Correndo o risco de ser simplista, respondo, a priori, que o tratamento de mãe com quadro de Síndrome de Dependência de Substâncias Psicoativas já tem sido realizado junto de filho menor de idade em alguns centros sérios ao redor do mundo, sob regime de internação.

No entanto, para que isso seja feito, é necessário um programa de tratamento bastante rigoroso e complexo para o manejo tanto da mãe quanto da criança, além de promover todos os cuidados de que a criança e o adulto necessitam. Não estou certo se existem clínicas no nosso país plenamente estruturadas para fornecer esse tipo de abordagem de forma efetiva e segura em um ambiente de internação, em comunidades terapêuticas, por exemplo.

Internar a mãe junto com seu filho significa ter uma clínica que, além de contar com uma programação de tratamento extremamente organizada e cientificamente embasada, possua profissionais amplamente habilitados no manejo tanto dos quadros de dependência química, quanto do desenvolvimento da criança. Psiquiatras (especialistas em Dependências Químicas e em Psiquiatria Infantil), psicólogos (especialistas em Dependências Químicas, Psicologia do Desenvolvimento, Terapia Sistêmica), assistentes sociais, pediatras, clínicos gerais, enfermeiros (especialistas em Psiquiatria e Pediatria) e nutricionistas serão todos necessários, formando um time de profissionais altamente engajados no manejo médico, psicológico e social dos pacientes maiores e menores de idade. Além disso, a equipe deve de fato ser interdisciplinar. Percebe-se que, além de cara, deve ser uma equipe bastante engajada funcionando 24 horas por dia.

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De fato, nos anos seguidos a 1990, um pequeno grupo de programas nos Estados Unidos dedicado ao tratamento de alto investimento para Dependências Químicas aventurou-se nesse território até então desconhecido: promover um programa terapêutico de internação para as mães dependentes químicas junto de seus filhos menores de idade.

Um desses programas desenvolveu-se em Miami, Flórida (The Village South, Inc.). Hoje, o programa conhecido como Families in Transition (FIT) é reconhecido local e nacionalmente como um modelo em que pais e filhos são tratados de forma integrada; assim, à medida que um genitor se recupera da sua doença (Dependência Química), os múltiplos riscos à criança – de doenças, falha escolar, perturbação emocional, futuro abuso de substâncias, negligência parental, alienação – são reduzidos.

Nesse programa, por exemplo, as famílias devem progredir de um período de intenso tratamento e reunificação familiar para um período de progressiva independência em que os pais treinam continuamente suas habilidades sociais, cognitivas e afetivas, assumem suas responsabilidades (inclusive a de ser pai ou mãe), e se preparam para a re-inserção social.

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Objetivos do programa

Esses programas altamente estruturados devem, dentre outras tarefas, promover:

• Tratamento adequado para os quadros de Dependência Química;

• Manejo dos quadros de Síndrome de Abstinência;

• Envolvimento de outros familiares no tratamento, inclusive aqueles que não estão internados;

• Visitações ao ambiente familiar no qual mãe/pai e filho retornarão (ou irão);

• Cuidados médicos e psicológicos adequados às crianças;

• Instalação de programas educacionais para as crianças, altamente individualizados;

• Segurança e ambiente acolhedor;

• Manutenção/aperfeiçoamento/desenvolvimento do relacionamento genitor – filho (ensinar a “arte de ser pai / mãe”).

Sem dúvida, a lista não termina aqui. Muitos desses programas se baseiam na crença de que a Dependência Química é uma das formas para perpetuar e agravar a disfunção familiar crônica. Dessa forma, o tratamento objetiva equilibrar/estabilizar os relacionamentos familiares, revelando o quanto o consumo de substâncias torna inaceitável e impossível o convívio familiar.

Esstes programas sustentam que a sobrevivência e o sucesso dos filhos são tão importantes quanto a recuperação dos genitores. E, além disso, que as crianças podem se recuperar do trauma relacionado ao problema de drogas dos seus pais e iniciar uma vida saudável e produtiva. Todos os profissionais envolvidos nesses tipos de programa devem ser adequadamente treinados para pensar dentro de uma perspectiva sistêmica. Todos devem entender como cada componente do programa contribui para melhorar o funcionamento familiar e possibilitar o sucesso do tratamento.

Se assim não for, os profissionais especializados na infância/adolescência focarão a atenção apenas no cuidado às crianças; os terapeutas de adultos focarão o trabalho apenas no problema do consumo inadequado de substâncias do adulto; os assistentes sociais apenas focarão na identificação de referências e contra-referências e, dessa forma, nenhum trabalho interdisciplinar terá acontecido. O treinamento de uma equipe exige tempo, seriedade, compromisso, respeito mútuo, adequada formação acadêmica e grande investimento.

Entretanto, embora a missão desses programas seja a unificação familiar e a promoção do bem-estar, infelizmente existem casos em que o próprio staff recomenda que a criança seja afastada dos seus genitores, quando a segurança e o bem-estar do menor estão em risco. Frequentemente, a principal razão tem sido a inabilidade do genitor em manter a sobriedade. Também, a presença de outro transtorno mental grave em conjunto com a Dependência Química pode ser um fator complicador a mais. Essas decisões são bastante difíceis para os profissionais e a presença de um operador do Direito na equipe, sempre respeitando os limites éticos e as respectivas atribuições, pode ser bem-vinda. Reitero que recomendações desse tipo devem ser adequadamente embasadas cientificamente, contando com profissionais altamente qualificados na matéria específica.

Em muitos casos o consumo inadequado de substâncias psicoativas está atrelado a outros inúmeros problemas sociais. De acordo com as estatísticas do programa citado (The Village South, Inc.), uma entre quatro famílias não tinha residência fixa antes de dar entrada no tratamento; metade das mães não tinha completado o ensino médio; apenas 13% tinham emprego formal.

Limitações do programa

Apesar de atraentes à primeira vista, esses tipos de programas não são livres de críticas e limitações. Abaixo, compilo algumas delas:

a) Esses programas poderiam limitar o acesso da criança a outros familiares que estariam em condições de serem tutores, mesmo que temporários. Além disso, a estadia prolongada da criança em uma clínica poderia enfraquecer ou mesmo fraturar algumas de outras conexões importantes com o meio social;

b) Programas como esses são muito caros e não existem pesquisas suficientes para apoiar a crença de que eles são mais eficazes do que uma forma menos onerosa (por exemplo, em hospital-dia, centros de atenção psicossocial, etc). De outra forma, os filhos, mesmo não estando internados, poderiam ter acesso continuado aos pais na clínica e também receber tratamento adequado dentro ou fora da clínica. Aqui, o problema seria identificar um familiar confiável e comprometido (o que, infelizmente, não é sempre possível);

c) A presença dos filhos na comunidade terapêutica junto do genitor dependente químico poderia também desviar o foco do tratamento, se a equipe não souber adequadamente manejar os casos;

d) Pesquisas sobre a efetividade desses programas, tanto em termos de cessação do consumo de substâncias pelos genitores, quanto em termos de funcionamento familiar pós-internação e desenvolvimento psicológico e social dos menores, ainda estão em sua infância. Além disso, pesquisas para avaliar todos estes aspectos são muito difíceis e onerosas.

De qualquer forma, a paciente em questão e o seu filho precisam receber tratamento e suporte adequados. Acolher ambos, promover uma intensa busca por familiares continentes (com o suporte da própria mãe), conduzi-los para um hospital geral (onde existem enfermarias pediátrica e psiquiátrica) onde ambos possam ser adequadamente examinados e tratados inicialmente seriam condutas recomendadas.

Não podemos nos esquecer de que existem várias formas de tratamento para as Dependências Químicas, e a internação em Comunidades Terapêuticas ou Clínicas é apenas uma delas.

Para cada tipo de forma de tratamento, existem recomendações e indicações específicas, e as indicações devem ser realizadas por médicos especialistas.

Simplesmente liberar uma mãe desesperada que relata grande fissura por drogas e descontrole, carregando um filho recém-nascido nos braços não seria conduta correta. Nesse caso, o profissional de saúde tem um triplo papel: com a mãe, com a criança e com a sociedade. Se a mãe é portadora de uma doença médica, ela merece um tratamento adequado. A criança precisa de cuidados médicos e psicológicos adequados, de uma família (inclusive da própria mãe) e de oportunidades para poder desenvolver-se adequadamente.

Com bom senso, boa ciência e adequado diálogo entre diversos profissionais engajados e interessados, uma boa conduta e consequentemente bom resultado poderão ser atingidos.

Abaixo, recomendo a leitura de um interessante manuscrito:

Arkansas Center for Addiction Research, Education, and Services (Arkansas CARES). Integrated services for mothers with dual diagnoses and their children. Psychiatric Services, 53 (10): 1311-13, 2002.