Sentimento de compaixão dá sentido à vida

por Fátima Fontes

Introdução:

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“O sofrimento físico possui uma trajetória na experiência humana. Ele desorienta e torna o ser incompleto, derrota o desejo de arraigamento; aceitando-o, estamos prontos a assumir um corpo cívico, sensível às dores alheias, presentes junto às nossas, na rua, finalmente suportáveis – mesmo que a diversidade do mundo dificulte explicações mútuas sobre quem somos e o que sentimos ”. (Richard Sennet, Livro: Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. RJ: Record, 2003).

Estamos outra vez vivendo um novo ano, novo ciclo de experiências que nos desafiará e ensinará aos que queiram aprender, que a arte de viver passa, inevitavelmente, pela arte de nos mantermos “eternos aprendizes”, como nos dizia o poeta Gonzaguinha.

E o desafio lançado texto a texto nesta coluna é o de sermos dia a dia mais humanos, mais conectados conosco mesmos e com nosso semelhante e nosso diferente. Só assim alcançaremos um “corpo cívico”, do qual nos fala o psicólogo social norte americano Richard Sennet, e que na epígrafe que abri esse texto nos apresenta esse conceito.

Portadores então, de um corpo que sofre e se alegra com o outro corpo, somos convidados a nos mover entre obrigações, compromissos, prazos, mas também desejos, abraços, prazeres e compaixão.

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Como escrevo essas nossas reflexões, crônicas, calcadas em nosso cotidiano e em nosso tempo presente, não é simples coincidência, diria até que é uma verdadeira “sincronicidade”, os fatos que ocorreram nesses últimos sete dias deste primeiro mês do ano. No dia 20 de janeiro desse nosso novo ano de 2013, me vi incomodada, impactada e tocada com uma notícia veiculada por um jornal paulistano: “Senhora morre em incêndio em prédio no centro”. As condições de vida e morte da aposentada Catarina Silva de 76 anos, que vivia na região Central de São Paulo, e morreu asfixiada, sendo encontrada com o corpo carbonizado em cima de sua cama, me mobilizava a escrever.

Mas qual não foi a “infeliz sincronicidade”, quando 7 dias após esse evento tão triste e solitário, nos vimos todos, aturdidos diante de uma tragédia coletiva que provocou uma noite de horror em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, na qual uma série de erros causou o maior incêndio em 50 anos: com 235 mortos e com 143 pessoas internadas no momento em que escrevo este artigo. .

Tudo isso me faz adentrar pelos meandros da vida de compaixão, da vida que só faz sentido quando se encontra com outras vidas, sobretudo em seus momentos de extrema dor.

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Morte solitária: não havia com quem contar

Pensar no morrer de dona Catarina nos remete imediatamente ao seu viver, e aí nos vêm as indagações: o que levou essa senhora a uma vida tão solitária? Em um trecho da reportagem, somos convidados a acompanhar uma cena cinematográfica: “Quando entraram no apartamento, os bombeiros descobriram o corpo carbonizado da aposentada ainda sobre o colchão, que foi onde o fogo começou. Ela morava sozinha”.

“Ela morava sozinha…” Esse foi o trecho que mais me comoveu, e que nos remete a pensar sobre como tecemos os nossos relacionamentos a um ponto tal que não podemos, sabemos, ou queremos mais partilhar a vida com mais ninguém.

As razões de sua solidão morreram com ela, e seria leviano levantarmos qualquer hipótese, mas me peguei pensando em alternativas relacionais coletivas, que existem e que podem nos tirar desse labirinto de solidão que construímos nos dias atuais.

Seria possível, por exemplo, conhecer espaços coletivos que podem receber pessoas sem família e por eles optar. Inclusive, há aparelhos públicos de qualidade na cidade de São Paulo destinado a pessoas que envelheceram e não contam com companheiros ou parentes para passarem os longos anos de seu envelhecimento. Sim, a longevidade foi conquistada e hoje pouco se morre por morte natural com menos de 80 anos.

Mas o que se vê, normalmente, independente da camada social a que se pertença, é um convite ao isolamento e à solidão. Muitas pessoas e até jovens, falam orgulhosamente de sua escolha pela solidão, mas se esquecem de que haverá os dias em que se cumprindo um ciclo, biológico afetivo e relacional, se irá precisar de cuidados especiais, de presenças conosco, ouvindo nossos clamores e nos acudindo.

Morte coletiva: não havia como escapar

A tragédia que comovidos e espantados acompanhamos, quase em tempo real, começou às 2h30 da manhã deste outro Domingo, 27 de janeiro de 2013, supostamente quando um músico acendeu um sinalizador para iniciar um show pirotécnico, numa boate em Santa Maria, Rio Grande do Sul, onde cerca de mil pessoas participavam de uma festa organizada pelos universitários que iniciavam suas Faculdades na Universidade Federal de Santa Maria – UFSM.

E não houve como escapar… Foram muitos os erros que se somaram para potencializar e propiciar a tragédia: não havia porta de emergência e nem sinalização; muitas pessoas em pânico e no absoluto escuro não poderiam achar a única saída que existia na boate. Com a fumaça, muitas pessoas morreram perto do banheiro. Somaram-se a tudo isso outros fatos: alguns seguranças da boate tentaram impedir as pessoas que tentavam sair sem pagar as comandas e na rua estreita, ocupada por carros estacionados dos dois lados e sem área de escoamento da boate, não se conseguia chegar ao lado de fora daquele verdadeiro inferno.

Mas o cenário de consternação foi coletivo: ao longo do dia centenas de manifestações de solidariedade vieram de todos os lados de nosso país e de fora dele, emocionada a presidente Dilma Rousseff lamentava o ceifamento das vidas envolvidas na tragédia e se comprometia, de perto, a prestar todo auxílio oficial possível e necessário e assim o fez.

Profissionais das várias áreas de ajuda e da saúde se revezavam no acolhimento aos parentes das vítimas desde o reconhecimento dos corpos, que precisou ser feito em um Centro Desportivo Municipal devido ao número das vítimas, e ao longo desses primeiros momentos de desespero e dor.

E aqui presenciamos a força de um enfrentamento coletivo: só havia como estar diante de tamanha atrocidade se estivéssemos juntos, assim a dor do outro se tornaria a nossa dor e isso transformaria em “suportável o insuportável”.

Conclusão: ano começa movido pela compaixão

No Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano, tem-se a seguinte conceituação para a virtude Compaixão:,

“Compaixão: Participação no sofrimento alheio como algo diferente desse mesmo. Essa última limitação é importante porque a Compaixão não consiste em sentir o mesmo sofrimento que a provoca. A emoção provocada pela dor de outra pessoa pode chamar-se Compaixão só se for um sentimento de solidariedade mais ou menos ativa, mas que nada tem a ver com a identidade de estados emocionais entre quem sente a Compaixão e quem é alvo dela.”

Desejo que a Compaixão seja a grande virtude desenvolvida em cada um de nós, neste ano de 2013.

Com esta rica e importante compreensão sobre o que vem a ser o estado de Compaixão por quem nos cerca, compartilho com vocês uma crônica apaixonada, que só pode ter sido escrita por uma pessoa mergulhada na Compaixão, o poeta e cronista gaúcho Fabrício Carpinejar.

A maior tragédia de nossas vidas

Morri em Santa Maria hoje. Quem não morreu?
Morri na Rua dos Andradas 1925. Numa ladeira encrespada de fumaça.
A fumaça nunca foi tão negra no Rio Grande do Sul.
Nunca uma nuvem foi tão nefasta.
Nem as tempestades mais mórbidas e elétricas desejam sua companhia. Seguirá sozinha, avulsa, página arrancada de um mapa.
A fumaça corrompeu o céu para sempre.
O azul é cinza, anoitecemos em 27 de janeiro de 2013.
As chamas se acalmaram às 5h30, mas a morte nunca mais será controlada.
Morri porque tenho uma filha adolescente que demora a voltar para casa.
Morri porque já entrei em boate pensando em como sairia dali em caso de incêndio.
Morri porque prefiro ficar perto do palco para ouvir melhor a banda.
Morri porque já confundi a porta de banheiro com porta de emergência.
Morri porque jamais o fogo pede desculpas quando passa.
Morri porque já fui de algum jeito todos que morreram.
Morri sufocado pelo excesso de morte; como acordar de novo?
O prédio não aterrissou de manhã, como um avião desgovernado na pista.
A saída era uma só e o medo vinha de todos os lados.
Os adolescentes não vão acordar na hora do almoço.
Não vão se lembrar de nada.
Ou entender como se distanciaram de repente do futuro.
Mais de duzentos jovens sem o último beijo da mãe, do pai, dos irmãos.
Os telefones ainda tocam no peito das vítimas estendidas no Ginásio Municipal.
As famílias ainda procuram suas crianças. As crianças universitárias estão eternamente no silencioso.
Ninguém tem coragem de atender e avisar o que aconteceu.
As palavras perderam o sentido