Pais órfãos de filho: sobrevive-se a essa dor?

por Regina Wielenska

Segundo as leis da probabilidade (ou da natureza, dirão alguns), pais morrem antes de seus filhos. Infelizmente, isso não é verdade absoluta. Tão ou mais dramático do que uma mulher morrer no parto é a mãe e o pai perderem seu filho, recém-chegado ao mundo ou “homem feito”, com algumas décadas de vida.

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A morte do jovem é a ruptura de paradigmas nos quais aprendemos a acreditar. Violência urbana, acidentes de toda espécie, doenças que ainda não sabemos curar ou a pura falta de assistência digna de saúde, esses são apenas alguns dos motivos que levam jovens ao óbito precoce.

O sofrimento no luto tem tamanho?

Há quem diga que enfrentar uma enfermidade prolongada dolorosamente prepara o espírito dos pais para lidarem com a perda que se avizinha, em contraponto à morte súbita, a qual surpreende, destroça nosso coração, nos deixa sem palavras. Há controvérsias, é provável que se perguntássemos aos pais de ambos os grupos sobre seu sofrimento não conseguiríamos encontrar tantas diferenças ou quantificá-las de modo preciso.

É fato que, como terapeuta, é preciso levar em conta todo o conhecimento científico acerca dos processos de luto nas famílias, e parece mesmo que algumas variáveis agravam ou amenizam o processo de luto nas famílias. Entretanto, isso posto, voltamos ao ponto de partida: cada um sentirá a dor da perda do jeito que as condições lhe permitirem. Não há dor maior ou menor que outra, seja física ou psíquica. Para alguém com problema no dedinho do pé esquerdo, o mundo se transforma num sofrimento, caminhar fica difícil, o problema atrapalha dormir, calçar o sapato é tortura. Outra pessoa tem a articulação do quadril profundamente desgastada pelo tempo, e isso lhe doerá infernalmente, de forma ininterrupta. Tanto quanto o dedinho do outro.

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Então não vale tentar confortar um pai ou mãe enlutados contando-lhes histórias de perdas aparentemente mais trágicas (a família que perdeu três crianças de uma vez só no ônibus escolar que capotou, os gêmeos prematuros que morreram na UTI neonatal, etc.). Dor é dor. Ponto final. Nunca conseguiremos sentir com precisão tudo que atravessa a mente e o coração dos pais que vivenciam a perda. Resta-nos respeitar, acolher e apoiar.

Viver fugindo da dor? É possível viver com a dor da perda?

Na contemporaneidade a morte tornou-se um produto a ser disfarçado (a morte é companheira de tudo que a cultura nos instrui a evitar: doença, dor, perda, velhice), e muito rapidamente buscamos nos despedir de quem morre e nos afastamos da família enlutada. O nome do jovem morto entra no limbo, quem ousaria citar seu nome e relembrar aos pais do ocorrido? Cria-se uma espécie de pacto do silêncio, os enlutados precisarão fingir que estão bem e os demais, sem muita clareza, supõem que todos estão levando a vida da melhor forma, a caminho da recuperação. Nem sempre é assim.

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A maioria dos que “escolherem” fingir que a dor não se faz presente, para si e para os outros, vive como se fosse presa de um caçador implacável. Se não chorar não é o que se espera de mim, soltarei meu pranto em doses homeopáticas na hora do chuveiro. Arranjo desculpas para não frequentar ambientes sociais festivos, digo que já tenho outro compromisso, até que um dia desistam de me convidar. O álcool ou os tranquilizantes podem se tornar substância de abuso. Filmes tristes, livros, noticiários, novelas e conversas, qualquer dessas coisas pode evocar lembranças e emoções difíceis. Na verdade, não há como fugir da dor. E nem se deve.

Fazer o que, então? Entregar-se ao desespero? Deixar-se morrer devagar? Forçar o enlutado a viver, sabe-se Deus como? Primeiro aspecto a se considerar: a maioria dos processos de luto chega a uma resolução saudável num período entre seis meses e um ano. Carinho, comunicação aberta, tolerância ao sofrimento alheio, incentivo suave para se retomar gradualmente a vida (inserindo a morte neste panorama, e honrando a estrada que os pais trilharam junto com o filho que partiu) são recursos suficientes para auxiliar algumas famílias.

No entanto, outros pais precisarão de cuidados intensivos, mais específicos. Afinal, no ranking dos eventos estressores, capazes de abalar seriamente um ser humano, a morte de ente querido ocupa lugar de destaque. E estressores dessa magnitude favorecem que problemas de saúde surjam, ou se agravem. Por exemplo, embora tristeza seja normal, a situação de luto não elaborado pode evoluir para depressão. E por ser uma condição clínica, é tratável por meio de psico e fármacoterapia.

Nenhum tratamento afasta a dor da perda, mas facilita ao indivíduo a lutar pela sua recuperação. Que luta é essa? Pessoas, quando bem sucedidas no exercício de suas funções parentais, são pessoas amorosas, que se dispõem a cultivar naquela semente de vida (que escolheram gerar ou adotar), o potencial da dignidade, honradez, sabedoria, bondade, grandeza nos atos e nas intenções. Filhos aprendem por exemplos, daí a importância dos pais serem consistentes, coerentes em suas palavras e ações. Quando o filho se vai, talvez seja hora de continuar celebrando os valores nobres que procuramos incutir em nossos filhos. Em memória da criança ou jovem morto, vamos viver plenamente, abrindo espaço para toda oportunidade de alegria e dor.

Um sentimento não anula o outro, afinal a vida é um mix de sentimentos, desejos, realizações e anseios. Se nosso filho estivesse vivo e nos procurasse em busca de conforto na adversidade, o que diríamos a ele, do fundo de nosso coração? “Filho querido, calma. A vida tem dessas coisas, mas lá na frente a luz vai voltar. Não desista, busque outros caminhos, olhe o que de bom você já conquistou, conte comigo”. Se essas palavras teriam sido ditas fundamentadas numa convicção pessoal firme, é hora do pai enlutado dizer algo similar a si próprio: “Meu coração dói demais agora, mas eu sei que lá na frente haverá algum mel nos meus lábios, luz nos meus olhos, esperança no coração. Resta-me descobrir como. Darei uma chance à vida, homenagearei meu filho permanecendo na luta em meio a esse mundo tão estranho e complexo no qual construí uma família”.

Dor do luto pode conduzir para novas vidas

Farei menção a uma pessoa cuja história conheci apenas através da imprensa. Seu caso é emblemático: a senhora Lucia Araújo, mãe de filho único, o cantor Cazuza, foi forçada a acompanhá-lo numa trajetória amarga, quando descobriu-se que ele fora acometido pelo HIV. Filho músico, irreverente, rebelde, liberto de convencionalismos, muito criticado e vítima de ainda maior preconceito após explicitar sua grave condição de saúde. A mãe nunca o abandonou e, depois que o perdeu, transformou a dor em energia propulsora para salvar outras vidas.

Ao contrário de Cazuza, rapaz abastado que pode contar com os melhores recursos médicos no intuito de salvá-lo, muitas crianças contaminadas pelo HIV não dispunham de condições materiais e sociais mínimas para lutarem pela vida. Lá foi essa obstinada mãe enlutada transformar o mundo e afirmar a todos que “o tempo não para”. Criou a ONG Viva Cazuza, cuja história poderá ser conhecida através do link http://www.vivacazuza.org.br/sec_quem_somos.php?sec=11 . E assim a morte foi vencida, transmutada em esperança de vida para muitas crianças. Tudo foi construído a duras penas pelo esforço de uma obstinada mãe em luto…