Paixão é cruel, mas necessária

por Patricia Gebrim

Ahhh… a paixão. Aquele frio na barriga, a sensação de vida pulsando na boca do estômago, a antecipação do momento em que encontraremos o objeto de nossa atenção, tornando tudo mágico e colorido ao nosso redor. De repente nos tornamos mais sensíveis e inexplicavelmente choramos de emoção ao assistir o trailer do… Bambi. Quando apaixonados, ouvimos músicas que já tínhamos ouvido mil vezes, mas pela primeira vez "as escutamos", e sentimos cada palavra e cada acorde com todas as fibras de nosso ser, e sonhamos, e imaginamos cenas de amor enquanto cantamos alto no chuveiro.

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Seria lindo, se não fosse a paixão um estado dotado de tanta crueldade.

Para que a paixão exista, é preciso que aniquilemos a existência do outro, que o transformemos em um nada, uma tela em branco, sobre a qual projetamos a pessoa que imaginamos, da forma como queremos que seja, aliás, da forma como "exigimos" que seja. Funciona assim: Primeiro matamos o outro, depois imaginamos alguém em seu lugar, e é por esse "alguém imaginado" que nos apaixonamos. Por isso repito, a paixão é cruel.
Sinto pelo banho de água fria. Que me perdoem os apaixonados, que talvez esbravejem contra estas palavras, aplaudidos pelo luminoso auge de sua cegueira pueril. Deliciosa cegueira, sou obrigada a concordar. Mas existe algo que alivia a realidade perturbadora deste texto que desnuda e destrona a tão desejada paixão. O fato de que, em certo estágio de um relacionamento, a paixão é mesmo necessária, para que sejamos capazes de nos ligar a um outro ser.

Como estabeleceríamos um vínculo, se soubéssemos logo de cara que o candidato a príncipe, ou princesa, era na verdade um sujeito comum, cheio de medos, um tanto egoísta, com um cheiro estranho no pé e o incômodo hábito de falar enquanto come, revelando aquela massa horrenda circulando como cimento dentro de sua boca? Só ficando cego mesmo, para achar bonitinho quando ele arrota para fazer graça para os amigos, ou quando ela bebe além da conta e acaba numa performance sobre a mesa do bar.

Exageros à parte, a paixão existe para nos levar pela mão do estado onipotente de solidão a um encontro com um outro ser. Seu propósito é belo, mais do que belo, é divino… O que acaba por nos ajudar a perdoar a cegueira que nos faz negar a existência do outro. Podemos fazer as pazes com o cupido, que é um bom camarada, afinal.

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Uma paixão pode ser breve como fogos de artifício, que nos deixam sem fôlego numa noite de verão, mesmo que no momento seguinte nada mais reste senão um cheiro estranho no ar e lembranças embaralhadas de momentos de puro êxtase. Podem durar mais, como as brasas de uma fogueira que ardem forte e vão se apagando aos poucos, até que o último fôlego do fogo seja engolido pela noite escura, salpicada de vaga-lumes. Até mesmo os vaga-lumes tem algo a dizer sobre a paixão. Outro dia li que eles acendem aquela luzinha para atrair o sexo oposto, mas para acender essa luz esverdeada que enfeita romanticamente as noites em meio à natureza, intensas reações químicas se passam no abdômen do pobre animalzinho, com mediação de uma enzima chamada luciferase – me chamou atenção esse nome – envolvida na bioluminescência, ou brilho dos vaga-lumes.

Os vaga-lumes adultos, li isso também, vivem apenas um verão. Acasalam e morrem, talvez como a paixão, que não foi feita para durar.

A única chance de uma paixão manter-se de alguma forma viva por um tempo mais longo, seria se transformando em amor, mas isso não é para qualquer um. Amor é coisa para gente grande, capaz de olhar para o outro através das projeções que foram lançadas sobre ele, capaz de aceitá-lo como é, de permitir-lhe a existência, a vida, a singularidade, os erros, os enganos, a imperfeição de ser gente como a gente, gente de carne e osso, que tem fraquezas, e medo, e raiva, e muitas vezes não é nada do que esperávamos que fosse.

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Para quem não for capaz de tal ato heroico, resta a saída de viver pela vida saltando de paixão em paixão, fugindo toda vez que o ser real do outro escapar de dentro das cavernas de suas projeções, correndo em busca de outra tela em branco onde possa despejar suas idealizações.