Quase tudo que aprendemos de bom e de ruim tem a ver com os pais

por Roberto D' Avila

Esta é a transcrição da segunda parte de uma entrevista concedida por Luiz Alberto Py ao jornalista Roberto D’Avila que comanda o programa Conexão Roberto D 'Avila na TV Brasil. O jornalista e o psicanalista cederam gentilmente a entrevista ao Vya Estelar.

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Para ler a primeira parte – clique aqui .

Roberto D' Avila – Agora há pouco você falou duas vezes do teu pai e do caso do Beethoven. Qual a influencia do pai sobre o filho?

Luiz Alberto Py – É enorme! Quase tudo que aprendemos de bom como de ruim tem a ver com a paternidade e a maternidade. A figura do pai é muito orientadora. O pai quando presente dá uma direção, quando ausente dá uma falta de direção que temos que suprir de alguma maneira. Por vezes encontramos uma direção que não tem um pai, mas é vinda de alguma figura masculina, um tio, o novo marido da mãe, padrasto, ou o professor, alguém que nos orienta alguém que dá um rumo.

Penso que a figura do pai é muito importante e eu, que sou pai recente de novo, sinto muito a necessidade de minha presença junto a meus filhos. Mas procuro fazer com que eles não me percebam nem como especialmente presente, muito menos como ausente. Se o pai está próximo e atuante, simplesmente não faz falta. É mais ou menos como um juiz de futebol: quanto menos ele aparece melhor está agindo. Lembro-me de ter tido uma experiência muito prazerosa, muito feliz. Estava passando um final de semana em Mauá com meus filhos e descíamos uma cachoeira repetidamente. Era muito gostoso e nós nos abraçávamos fazendo aquelas estripulias, pequenas aventuras e pensei “Que coisa inesquecível!” mais do que isso: se meus filhos não se lembrarem desse momento, seria melhor ainda, porque eles não precisariam ficar se lembrando da grande vivência da vida deles. Eu quero que minha vida com eles tenha uma convivência de tal ordem que eles não precisem estar se lembrando do nosso momento… Enfim, que a nossa vida tenha sido plena de tantos momentos que nem dê para se recordar de todos.

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Roberto D' Avila – O que é ser um bom pai e uma boa mãe?

Luiz Alberto Py – Donald Winicott, um inglês que foi pediatra e depois psicanalista, trabalhava muito com crianças e dizia: “Não existe boa mãe”. A mãe que quer ser boa mãe já perdeu a batalha. Ela tem que ser mãe, ela tem que cuidar do filho. Se ela está preocupada com o adjetivo “boa”, está preocupada com sua vaidade, sua tarefa fica prejudicada. Tenho uma experiência de paternidade tardia. Agora estou com dois filhos pequenos. Tenho filhos de quarenta anos e de dois anos. Outro dia peguei meu filho de dois anos no colo, abaixei a cabeça dele no meu ombro e eu vi quando ele ia dormir. Vi aquela cabecinha repousada, aquela confiança que aquela criancinha depositava em mim e isso me fez tanto bem. Fiquei ali abraçado com ele, pleno e feliz. Pensei que num outro tempo da minha vida, quando tive meus primeiros filhos, eu não era capaz disso. Eu não tinha aquela tranquilidade, aquela serenidade, eu estava querendo crescer profissionalemente e pensava: “Segurar uma criança no colo qualquer pessoa pode fazer”. Vou largar a criança, pois tenho um artigo para escrever, um livro que preciso ler, uma aula para preparar. Havia uma pressa, uma tensão que não me permitia, ou melhor, eu não me permitia saborear a paternidade. Os jovens muitas vezes têm pressa porque não têm tempo. Os velhos têm tempo. O tempo que temos é o tempo que já vivemos. Agora capitalizo o tempo que já vivi e isso me dá muita serenidade. Eu não tenho a pretensão de ir mais longe do que já fui e agora posso pegar um filho no colo e ficar ali parado pensando em nada e sentindo o prazer daquela convivência de corpo com corpo.

Roberto D' Avila – Algumas poucas vantagens do envelhecimento seriam…

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Luiz Alberto Py – Bem, envelhecer dói! Todo dia eu acordo com dor, no pescoço, no ombro, nas costas. Outro dia fui fazer ginástica e o professor disse: E aquele torcicolo, melhorou? O torcicolo melhorou, mas agora estou com dor nas costas. Todo dia tem uma novidade meio desagradável. Mas, por outro lado, me sinto muito mais feliz hoje. Muito mais sereno frente à vida, e frente à morte também. Tenho uma relação positiva com a morte.

Relação positiva com a morte

Roberto D' Avila – Você tocou agora na grande questão que todo ser humano num determinado momento da vida, começa a se perguntar: até quando ele vai viver, o que é a vida nesse sentido frente à morte?

Luiz Alberto Py – Hoje tenho a vantagem da idade. Quer dizer, é mais ou menos assim: Quando você se sente ameaçado de morrer e tem 20 anos, você se sente roubado do tempo de vida, do potencial de vida. É como se você tivesse uma carteira cheia de dinheiro e a perdesse. Aos 60 anos a minha carteira já está muito menos cheia. Perdê-la não é um desastre tão grande assim. Já aproveitei muito a vida. E não é só isso não. Tive uma experiência de convivência com a morte que foi muito forte para mim no nível emocional. Foi quando meus filhos sofreram um acidente. Os três meninos estavam num carro e bateram. Foram parar num hospital seriamente machucados. Um deles ficou duas semanas entre a vida e a morte e internado durante três meses.

Nos primeiros dias houve um momento em que ele ficou muito agitado, em coma superficial. Os enfermeiros o amarraram na cama e ele piorou muito da agitação. Eu estava no quarto e disse para eles deixarem o garoto comigo. Desamarrei meu filho e fiquei a noite inteira de mão dada com ele para acalmá-lo e pensando na possibilidade que ele morresse. Naquele momento era meio a meio a probabilidade de morrer ou sobreviver. E nessa noite pensei muito no que significaria para mim uma possível morte dele e percebi que não teria mais o que eu achava que ia ter, que esperava ter que era a continuidade da presença dele vivo na minha vida. Me dei conta de que não estava perdendo meu filho, eu estava perdendo o filho que ainda não tinha – mais velho, pai de família, com filhos crescidos. O que eu tinha, eu tinha. Eu tinha aquele momento em que a mão dele estava agarrada na minha mão, ele de vez em quando acordava e dizia: “Papai, vamos embora daqui!” E eu respondia: “Espere um pouco, fica calmo!” E nesses momentos, para ele se acalmar e dormir, eu cantava as cantigas de ninar de antigamente, as que eu cantava para ele quando era bebê. E pensei: “Eu tive um filho. Tenho de ficar feliz pelo filho que tive e não ficar infeliz pelo filho que eu posso perder.” Isso me deu uma dimensão de que a vida é o que ela é e que a morte é natural. Todos nós morreremos. A gente tem que ter uma relação mais tranquila, mais serena com aquilo que é o destino de todos nós.

Roberto D' Avila – Talvez aí por causa disso tirar mais proveito da vida.

Luiz Alberto Py – Claro! Eu me lembro de que por ocasião do acidente fiquei muito aflito, não queria que ele morresse, me dava pena, ele era um menino cheio de potencial. Eu pensava: “Meu Deus do Céu! isso tudo vai embora”. Houve uma manhã em que, depois de uma noite intensa dessas, me disseram que ele estava muito mal. Eu não havia dormido e tinha decidido descansar um pouco em casa. Sai do hospital levando comigo a notícia de que ele talvez não passasse daquele dia. Cheguei em casa, sentei na cama e comecei a chorar. Pensei em rezar. Eu não tinha religião nenhuma, era desligado de religião. Mas pensei que queria poder trocar minha vida pela dele, o que eu podia e queria fazer era oferecer minha vida pela dele. E me veio a ideia de que minha morte não valia nada, que Deus em vez de deixá-lo morrer podia ficar com minha vida. E ofereci minha vida a Deus para salvar meu filho. Nesse momento me deu uma serenidade, uma confiança de que ele não ia morrer, um sentimento forte dentro de mim e fiquei calmo, sossegado e dormi. Quando acordei liguei para o hospital e soube que ele tinha melhorado. Um dia me perguntaram, em uma entrevista, se eu venderia minha alma ao diabo. Respondi que já havia feito um acordo com Deus e entregado minha alma a Ele. A minha vida é dedicada a Deus e isso me ajuda sempre. Desde então até hoje, quando em dúvida sobre o que fazer, qual caminho seguir, me pergunto “O que Deus gostaria que eu fizesse?”. Fico imaginando o que Deus gostaria que eu fizesse e procuro seguir a Sua vontade. Ou, pelo menos, o que acho que seja a vontade divina.

Roberto D' Avila – É uma certa pretensão do ser humano de estudar, buscar um cientificismo nas coisas e deixar esse lado mais espiritual de lado?

Luiz Alberto Py – A questão espiritual para mim é muito relevante porque a espiritualidade faz parte do ser humano. Todas as culturas humanas tem alguma vinculação com a espiritualidade, tem uma religiosidade, uma devoção aos antepassados. A ideia de que existe algo mais “entre o céu e a terra” de que existe alguém maior. Isso está em todas as culturas humanas, faz parte de nosso DNA. Não sei até que ponto isso é verdade, mas de qualquer maneira trabalhar com a hipótese da existência de Deus é bom, faz bem, ajuda a viver, ajuda a gente a se orientar.

Gosto de todo dia fazer uma oração agradecendo meu dia e então, para agradecer meu dia, eu recapitulo o que houve de bom e o que não houve de ruim. Todo dia temos para agradecer os desastres que não sofremos e a proteção que recebemos. Acho que isso torna a administração da vida melhor e mais fácil. Por outro lado, acho que não há qualquer antagonismo entre ciência e espiritualidade. A meu ver elas coexistem bem. Penso que é bobagem procurar colocar uma contra a outra.

Roberto D' Avila -Toda sua experiência humana atendendo pessoas, te levou a escrever alguns livros. Pode-se chamá-los de autoajuda?

Luiz Alberto Py – Todo livro é de autoajuda. A gente pega um livro para se ajudar, para aprender alguma coisa, para se divertir, para se distrair… A relação que temos com um livro, em geral, é uma relação de nos ajudar. Mas há alguns livros que tem a intenção explícita de ajudar as pessoas a serem melhores Esses livros ficam na estante rotulados de livros de autoajuda. Esse rótulo desmoraliza tais livros porque tem muito livro de autoajuda ruim. Procuro fazer livros que estimulem as pessoas a pensar. Buscando através das coisas mais simples da vida. Eu pretendo escrever a continuação desse livro “As coisas simples da vida”. Por que são as coisas com as quais estamos sempre convivendo. Falamos da esquina e não do Nepal. Busco falar das coisas simples com uma ótica diferente de forma a estimular as pessoas a pensar, a concordar ou discordar de mim. Tipo: “Ah, eu nunca tinha pensado nisso” ou “Eu já tinha pensado, mas não sabia como dizer”. A proposta é essa, e tem um pouco a ver com o meu trabalho. Acredito que eu faça isso como psicanalista.

Meu trabalho, hoje em dia, é uma conversa com meus clientes muito despretensiosa, onde pretendo apenas dizer alguma coisa para eles que os estimulem, que acrescente, que os levem a pensar, que revelem algo que ainda não tenham percebido sobre eles mesmos. No fundo ajudar, mas ajudar através do conhecimento.

Penso que o conhecimento nos traz liberdade e nos torna mentalmente mais saudáveis. Onde há ignorância, onde há o desconhecimento se cria um espaço propício para imaginação e quando começamos a trabalhar com a imaginação e não com a realidade e nos afastamos da realidade começa o delírio. Nesse sentido, o conhecimento é terapêutico. Saber é terapêutico. Tem uma frase na Bíblia onde se fala: “Só a verdade nos torna livres” e acredito muito nisso, em buscar a verdade, o conhecimento.

Quando trabalho com as pessoas, procuro agregar conhecimento, chamar atenção para um detalhe que as pessoas não perceberam, ver as coisas de outra maneira e descrever de outro jeito. Nos meus livros procuro fazer isso. Eu vou pegando pequenas coisas inéditas da vida no cotidiano da gente e vou tentando colocar alguma ideia nova que ainda não tenha sido pensada. Procuro fazer com que meus livros sejam fáceis de serem lidos e, ao mesmo tempo, que sejam uma busca, que não sejam uma distração, mas que ajudem as pessoas a ficar bem com elas mesmas.

Procuro colaborar para que as pessoas sejam felizes. Eu acho que esta é uma grande proposta. Eu acho que Deus quer de nós é que agente seja feliz e não incomode os outros. E mais, se formos ler os filósofos clássicos veremos que esse é o intuito deles ao escrever. Portanto, muito mais do que autoajuda, acho que escrevo filosofia. Filosofia sobre a vida como Platão, Epicuro, Spinoza e tantos e tantos outros.