Partilhar delicadeza nos aproxima do outro

por Fátima Fontes

Introdução:
“A resposta delicada acalma o furor, mas a palavra dura aumenta a raiva”
(Livro de Provérbios 15:1).

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Chegamos a mais um fim de um ano, e como de praxe, somos inundados, no mundo ocidental, por uma nuvem de virtudes humanas: delicadeza, generosidade e solidariedade passam a morar conosco em nossas relações.

Avaliações sobre o que passou no ano que finda, desejos e planos são desenhados para o novo ano que "cochila dentro de nós", como nos dizia o poeta Drummond, e a esperança passa banhar nosso cotidiano.

Ah! Mas como seria bom que "todo dia fosse Natal", como diz a canção natalina, mas será que não podemos construir natais ao longo do ano? Esse será o mote de nossa reflexão.

Seguramente, me absterei propositadamente do “triste apelo consumista” que marca esse período do ano, alardeando para as vendas de uma sociedade de consumo, que equivocadamente, “só se vive o Natal se podemos comprar”: seja a roupa nova, o carro novo, o programa de viagens e etc… Excluindo assim, um exército de pessoas que não têm a menor condição financeira de “consumir”.

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Com os aspectos que exporei aqui, quero retornar ao mundo das relações imateriais e afetivas, no qual nos afetamos mutuamente porque somos capazes, mais do que em qualquer outra época, de promovermos “bons encontros”, como nos propõe o filósofo Espinosa, nos quais: um corpo afeta positivamente o outro corpo e aumenta a potência de “ser” e de “agir” do outro.

Partilhar delicadeza: caminho para o encontro

A mim, em especial, muito me toca o espírito de delicadeza que passa a conviver entre nós neste período do ano. A delicadeza das ‘pequenas gentilezas’ inter-relacionais, tais quais: deixar o outro carro passar na sua frente em um trânsito frenético; ajudar alguém que carrega muita carga; dizer “boas festas, feliz natal, feliz ano novo” para desconhecidos; agradecer as gentilezas que são feitas; abraçar com vontade aqueles a quem queremos bem … e por aí segue o precioso repertório de ‘bem-querências’.

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Mas também há outras gentilezas: passamos a ser mais expressivos em nossos afetos, bem mais que em nossos desafetos. Aquela economia de elogios e confirmações que foi usual durante o ano, dá lugar a pequenas palavras de grande conteúdo e força relacional. Sim, dizer que estamos felizes na companhia do outro e não somente com seu desempenho, faz muita diferença aos vínculos.

Recuperamos assim o elemento básico com o qual precisamos alicerçar e amalgamar nossos vínculos: a confirmação do outro – ou seja, seu valor como pessoa. Sim, teremos “outro mundo” para viver, quando a alegria, esse afeto que aumenta a potência do ser, marcar nosso cotidiano. Não uma “alegria de hiena”, de comercial de bebida alcoólica, mas uma alegria que fortalece os laços humanos, porque confirma nossa presença e participação no mundo.

E confirmamos o outro, quando o reconhecemos, quando a ele nos dirigimos, quando agradecemos as pequenas e grandes gentilezas, quando nos interessamos por seu cotidiano, por sua vida, por suas lutas e por suas alegrias.

Já nos disse o biólogo chileno Humberto Maturana, que a pior das emoções humanas e a mais violenta de todas é a “indiferença”. Segundo esse estudioso, bem mais violento do que a agressividade, na qual “perdemos a paz diante do outro”, na indiferença, negamos a existência e a presença do outro, é aquela destrutiva, mas comum, realidade inter-relacional: “não dou a mínima atenção para você, ou não me importo com você, em nada”, e isto sim, pode dizimar a nossa paz e nossa condição humana de sonhar e de lutar.

Que então a “delicadeza” da confirmação da presença do ano, possa ser nosso grande alvo para o novo ano e para todo os que se seguem.

Delicadeza para cuidar de nossos vínculos

Sabemos que a vida não é feita de grandes datas, mas sim de um cotidiano repleto de complexidade e desafios. Proponho então que possamos nos guiar por um código pautado na “delicadeza cotidiana”, que poderá ser orientador de um dia a dia mais qualitativo e satisfatório com o outro.

Como todo código, haverá sanção, punição para o não cumprimento de seus regulamentos, e este será o de amargarmos o velho e conhecido queixume cotidiano, aquele lamentável argumento relacional: “não tá bom, mas não tá ruim…”, que nos remete a uma vida diária de insatisfação e de não celebração do viver e de estado insaciável de consumo, seja de bens materiais, seja de ‘novos vínculos’, como se houvesse: um par ideal, um amigo ideal, um filho ideal, um pai/mãe ideal, um irmão ideal, um emprego ideal, uma profissão ideal, etc… .

O castigo espreita a todos, é como o que recebeu Erisicton, que no mito que nos foi narrado, o recebeu por ter cortado o carvalho no qual as Druidas costumavam fazer suas danças. Ceres, a deusa generosa e magnânima, diante da crueldade e da desobediência de Erisicton, apareceu sob uma faceta também cruel e vingativa. Conta-nos a narrativa mítica que ela enviou uma das Druidas à árida região onde habita a Fome, com ordens expressas para que esta se apoderasse de Erisicton. Ceres assim ordenou: “Dize-lhe que ele nunca se satisfaça, por maior que seja a abundância. Terá uma fome insaciável mesmo enquanto estiver devorando os alimentos”. A Fome obedeceu às ordens recebidas.

No outro dia Erisicton acordou com um desejo louco de comer e apressou-se em buscar alimento que o saciasse. Porém, quanto mais comia, mais fome tinha… No preciso momento em que enchia a boca de comida, morria de fome. Gastou tudo o que tinha em grandes quantidades de alimentos que, no entanto, nunca o saciavam. Por fim, já nada lhe restava a não ser a própria filha, vendeu-a também… E por fim, quando nada supria seu consumo desenfreado, Erisicton devorou-se a si mesmo até a morte. (Mito narrado por E. Hamilton, no livro A Mitologia, Lisboa, Publicação D. Quixote, 1983).

Fiquemos, pois, atentos: longe da delicadeza, construiremos um estado insaciável de idealização relacional, e nos tornaremos reféns para sempre da ação negativa do outro: foi ele quem nos irritou, quem nos feriu quem nos magoou, quem já não nos satisfez e o final de nossa história pode ser como o de Erisicton: devoraremos-nos a nós mesmos, numa profunda e absoluta solidão existencial e relacional.  

Redescubra a delicadeza: o melhor dos presentes

Finalizo este texto que fecha nosso segundo ciclo anual de textos, desejando a todos os leitores e leitoras desta coluna um novo tempo de delicadeza, cuidada e nutrida por cada um de nós em nossos vínculos.

E proponho a canção “Pétala por pétala” do nosso querido poeta musical brasileiro, o paraibano Chico César, como roteiro para essa proposta.

Pétala por Pétala 

(Chico César / Vanessa Bumagny) 

a sua falta me fez ver
o que de mau a vida pode ter
e a sua volta me dá mais
de todo o mel que eu ousaria querer

sua presença me faz rir
nos dias feitos pra chover
não há revolta pra sentir
nem há milagre pra não crer

vinda que finda
a tinta de pintar tristeza
deixa os mistérios plenos de sentido
e a flor da vida toda

pétala por pétala
que um tolo pode colher
sem saber que é amor

vem e aumenta em mim
o único que sou
me subtrai do que em mim passou
é amor, vem