Ciências factuais não trabalham com o acerto

por Luís César Ebraico

As ciências formais – Lógica e Matemática – não dependem da coleta de dados empíricos para avaliar a correção de suas afirmações. Para saber que, se a = b – c, então, está correto afirmar que a + c = b, ninguém precisa levantar de sua poltrona e ir colher dados na realidade. Já toda ciência factual – Física, Química, Biologia, Psicologia, etc. – para testar a validade de suas hipóteses, depende de coleta de dados, sempre submetidos a algum tipo de mensuração, desde as mais refinadas, como na Física, às mais grosseiras, como na Psicologia.

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Isso faz que as ciências factuais não trabalhem com o acerto, mas, sim, com o ERRO IRRELEVANTE, já que toda a medida contém erro e o que se tem que decidir é a QUANTIDADE DE ERRO COMPATÍVEL com a execução eficaz da tarefa que tenho em mãos. Um erro de centímetros no tamanho de uma estrada é irrelevante, no tamanho de uma calça, não é.

Também assim na vida. É necessário avaliar a quantidade de ERRO IRRELEVANTE numa determinada atividade para otimizarmos a relação custo-benefício de nossos comportamentos, evitando despender esforços desnecessários, quando a margem de erro já se tornou irrelevante, ou deixar de despendê-los, quando a margem de erro ainda é grande demais.

Passo a ilustrar esses dois tipos de situação:

1ª) Fazendo esforços que não valem a pena

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Consideremos o seguinte fragmento de sessão:

IRENE: — Doutor, eu nunca havia dito isso para o senhor, mas está ficando impossível.

LC: — O que está ficando impossível?

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IRENE: — Eu moro perto daqui e venho de automóvel. Chego em menos de meia hora e ainda dá tempo para estacionar. Mas, para chegar aqui às nove da manhã, tenho que acordar ás cinco, porque, após ter feito minha higiene matinal e tomado o café da manhã, o que termino por volta das seis, FICO CERCA DE DUAS HORAS E MEIA em frente a meu armário, botando e tirando roupa, botando e tirando roupa. Acho uma quente e troco; acho a outra fria e troco; acho a outra muito escura e troco; a outra muito clara e troco; já a seguinte me parece muito colorida e troco… É um inferno! O mais esquisito é que, quase sempre, termino por sair com a roupa que eu havia escolhido por primeiro!

Evidente que a motivação consciente de Irene é NÃO ERRAR na escolha da roupa com que irá sair de casa. Mas, ora, como suas dúvidas eram provocadas por diferenças mínimas entre as roupas, qualquer erro cometido nessa escolha trar-lhe-ia um prejuízo insignificante, enquanto o ERRO NÃO QUERER ERRAR em relação ao irrelevante a torna presa do significativo prejuízo de perder preciosas horas de seu dia.

Essa dificuldade é típica de pacientes com Transtorno Obsessivo-Compulsivo, psiconeurose descrita por Freud, que tem como uma de suas características o deslocamento, mecanismo psicológico que, entre outras coisas, leva o sujeito a atribuir importância desmesurada a ocorrências irrelevantes. O mais estranho é que esse tipo de paciente fica algo surpreendido quando lhe aponto que, evidentemente, seu objetivo é não cometer NENHUM ERRO, mas que, para evitar um ERRO MENOR, sair com uma roupa que não esteja perfeita, está cometendo um ERRO MAIOR, o de perder horar preciosas de seu dia.

Essa surpresa consiste no fato de que, anteriormente a minha observação, a paciente podia estar achando INCÔMODO o desperdício dessas horas, mas ainda não pensado em tal desperdício como UM ERRO. A partir dessa alteração do SIGNIFICADO DO DESPERDÍCIO, não é difícil, via de regra, convencer o paciente a se permitir cometer pequenos erros para evitar erros maiores, VERBALIZANDO, para si mesma e para mim, quais tipos de emoção experimentou ao fazê-lo e que imagens ou idéias acompanharam essa experiência. O processo desemboca regularmente na produção de sonhos e de lembranças, levando pouco a pouco à remissão do sintoma.

2ª) Não fazendo esforços que valem a pena

Quando se indica um remédio a um paciente, uma das considerações a serem feitas é a de escolher aquele que, em sendo capaz de debelar a doença, tenha o menor possível efeito colateral. Também quando veiculamos verbalmente uma mensagem, podemos fazê-lo de formas que têm menor ou maior efeito colateral. A população em geral, contudo, está bem pouco alertada sobre esse fato, e, conseqüentemente, não faz qualquer esforço para evitar algumas dessas formas com sutil, mas relevante, efeito colateral. Comparemos os dois exemplos de diálogo a seguir:

Primeiro exemplo:

FULANO: — Caramba, estou em um beco sem saída. Na verdade, lá no meu trabalho, blá, blá, blá, blá, blá, blá…

BELTRANO: — Cara, você TEM QUE blá, blá, blá, blá, blá, blá…

Segundo exemplo:

FULANO: — Caramba, estou em um beco sem saída. Na verdade, lá no meu trabalho, blá, blá, blá, blá, blá, blá…

BELTRANO: — Cara, me parece que SERIA MAIS PRODUTIVO SE você blá, blá, blá, blá, blá, blá…

No primeiro tipo de comunicação, junto com o remédio, eu inoculo o veneno. Com efeito – e dificilmente o cidadão comum tem consciência disso – quando digo “você TEM QUE blá, blá, blá, blá, blá, blá…”, além de transmitir uma determinada informação, eu TRANSMITO ANGÚSTIA, uma emoção que tende a paralisar ou desorganizar o comportamento de quem a experimenta. Se a angústia inicial é pequena, esse acréscimo vai atrapalhar alguma coisa, mas pouco; se já é significativa, pode simplesmente impedir que a informação em pauta seja utilizada. Como é muito difícil avaliar o nível dessa angústia inicial, VALE A PENA fazer o esforço de evitar, em nossas comunicações, a expressão TEM QUE, a não ser que se trate de trocas muito objetivas do tipo:

FULANO: — Jorge, que é que eu TENHO QUE fazer para ligar esta máquina?

BELTRANO: — Você TEM QUE dobrar aquela alavanca para a esquerda e blá, blá, blá, blá, blá, blá…

Tirando esses casos, se me dou ao trabalho de substituir o “TEM QUE” por algo do tipo “NESTE CASO, EU ACHARIA MAIS PRODUTIVO QUE” obtenho a significativa vantagem de TRANSMITIR INFORMAÇÃO SEM PROVOCAR ANGÚSTIA. Vale a pena tentar.