Memória no lixão da Avenida Brasil

por Samanta Obadia

A evolução humana se dá com o outro. E para isso, é preciso construir memória, formada a partir da repetição. A criança precisa repetir para assimilar.

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Quantas vezes repetimos aos nossos filhos as mesmas palavras? Estude! ”Não veja televisão tão de perto. Faz mal à vista.” “Coloque um agasalho.”

A repetição é necessária para o aprendizado. E educar, o que é? É ensinar, adestrar, repetir, insistir, limitar para então conscientizar, responsabilizar e libertar. Esta libertação trará a formação de uma história pessoal atrelada à história do grupo ao qual pertenço, e que me trará o autorrespeito, a minha honra e, então, a querida felicidade.

Não é demais falar sobre a constante desumanização que muitos povos sofrem. A atual novela da TV Globo, Avenida Brasil, cita, através de seus personagens, a triste condição de crianças que vivem escravizadas no lixão.

Reflexão sempre bem-vinda. Mas nada disso é fácil, principalmente quando se vive em um país onde, infelizmente, ouve-se constantemente que o povo brasileiro não tem memória. Como assim? Não ter memória significa não reter conhecimento. E se não apreendermos, não há evolução. Seria como se cada humano voltasse à ‘estaca zero’ sempre. Se não tivermos um conhecimento anterior, não seremos capazes de discernir entre o bem e o mal. Dessa forma, perderemos a consciência, voltaremos à ingenuidade, não infantil, mas ignorante.

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Lembro-me do filme alemão de Michael Verhovem, de 1990, “Uma cidade sem passado”, que potencializa as discussões atuais em torno das memórias silenciadas ou esquecidas. Neste, os alemães vivem um momento de vergonha pelos acontecimentos provocados pelo regime nazista e tentam negar o passado.

Para educarmos um povo é preciso construir sua memória. Memória para cultivarmos valores éticos que deverão ser transmitidos para os nossos descendentes. A ética deve ser recíproca, os valores devem ser únicos para todos. Ser ético é respeitar o outro.

E o que é um valor? É algo que deve ter um conceito social. É preciso que o grupo o reconheça como tal. Quando se tem uma nota de 100 reais, não importa se está velha ou nova, amassada ou não, o seu valor será o mesmo. Da mesma maneira, o pudor, a bondade, a ética, a verdade, a dignidade e a honestidade são considerados bons valores e devem ser reconhecidos por todo um grupo da mesma forma e não só por parte desse grupo.

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Gosto da definição de Paul Ricoeur, quando diz que “Perspectiva ética é a perspectiva de uma vida boa, para e com outrem, em instituições justas”. Deve haver cooperação e generosidade no âmbito social. É possível que, a solidariedade, a dignidade, a lealdade e a generosidade sejam valores ruins? Existem momentos em que devemos ser bons e outros em que devemos ser maus? Um valor não pode perder-se, não pode ser alterado, pois a essência de ‘ser valor’ é a identidade com aquilo que ele é. Não há mudança. Dar valor é conhecer a verdade, entender as diferenças, discernir o bem e o mal, valorizar o que é útil para todos: a liberdade e a felicidade. O conhecimento da verdade tem que ser a ferramenta para a liberdade coletiva.

E isso é exercer a felicidade, pois apenas sou feliz quando abro possibilidade para a felicidade do outro. A minha liberdade ou a minha felicidade não acaba quando começa a do outro, mas termina quando acaba a do outro.

“O costume, pois, é o grande guia da vida humana” disse David Hume, e é por isso que repetir o conhecimento anterior deve ser um costume, uma tradição, um alimento para a nossa memória, um degrau que já foi subido para dar impulso aos que estão vindo.

Conhecimento é transmissão. Os mais velhos são o húmus da terra. Eles a fertilizam. Quando ensinam, lançam sementes para os mais jovens.

Como disse Karl Marx, “os filósofos se limitaram apenas a interpretar o mundo de diversas maneiras; trata-se, porém, de transformá-lo”. Para mim, filosofar, pensar é uma forma de ação que nos impele a fazer o bem. E quando transmitimos o nosso saber com convicção, tornamo-nos exemplos e influenciamos novas vidas, seduzindo-os a seguirem os nossos passos. E isso é exercer a felicidade, pois apenas sou feliz quando abro possibilidade para a felicidade do outro.

Durkheim, citando Weber, fala de um ser humano que se sente num mundo “desencantado”, aonde o individualismo chegou ao extremo. Devemos ter cuidado com isso, pois é o desmoronamento da capacidade de vida coletiva que gera a crise ética. Não há concordância, visto que a expressão ‘cum cor’ é colocar o coração junto.