Somos muito melhores do que nos percebemos

por Fátima Fontes

 Introdução
“Quando um sonhador se depara com um muro, costuma apalpá-lo, milímetro por milímetro, enquanto vai se perguntando por que é que os homens se aprimoram em se afastar uns dos outros de maneira tão dura. Que desperdício de pedra e tinta! Então salta o muro.”

(Regina Gulla. Livro: Manifesto do Sonhador. 1ª Ed. São Paulo: Pólen, 2014, p.12).

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Mais uma vez estamos juntos neste espaço reflexivo sobre nós e nossos vínculos. Desta feita, me inspirei em duas experiências que me mostraram muitas coisas sobre a qualidade de nossos vínculos humanos.

A primeira experiência ocorreu aqui em São Paulo, final de agosto de 2014 e dela participei ativamente. A segunda ocorreu longe daqui, em Buenos Aires no início de agosto, e mais especificamente na Plaza de Mayo, em frente ao palácio do governo argentino, e desta participei de forma indireta acompanhando-a por noticiário.

Na primeira experiência vivi a surpresa e o encantamento de perceber o quanto podemos nos auto-organizar em situação de risco, tumulto e confusão, e ela ocorreu no enorme galpão que abrigou milhares de pessoas no sábado, 30 de agosto, no Pavilhão de Exposições do Anhembi, em São Paulo, desejosos de comprar seus bilhetes de entrada para a linda festa literária, Bienal do Livro, que ali se realizava.

A segunda experiência nos apresenta a uma realidade de sonhadores e saltadores de muro, como colocados na epígrafe que abriu esse texto: ou seja, nela atestaremos a força que tem o espaço de luta coletiva para nos reaproximar de pessoas de quem forçosamente nos separamos, caso das avós da Praça de Maio, em Buenos Aires, que há trinta e cinco anos lutam para rever seus netos, delas separados, pela ditadura militar argentina que governou aquele país entre os anos de chumbo de 1976 a 1983.

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Que a partir desta reflexão tenhamos ainda mais forças e confiança para pularmos os muros que nos afastam uns dos outros, e assim percebamos o quanto de luz e amor uns pelos outros ainda carregamos, o que nos torna a cada dia também seres humanos melhores, a despeito da também crescente realidade de violências que nos cerca.

A auto-organização que nos habita

Foi realmente impactante para mim a percepção de que somos muito além do que dizem de nós e de nossos vínculos. Temos sido bombardeados por notícias negativas acerca de nossa índole relacional humana, sempre apresentada como quase feras bárbaras. E isto é apenas parte de uma realidade não seu todo e disto nos esquecemos ao escutarmos e vermos as exaustivas e repetidas cenas de violências humanas, sobretudo as que ocorrem em espaços urbanos, o que nos deixa tomados de uma sensação de impotência, medo e desesperança.

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E estar no sábado dia 30 de agosto entre milhares de pessoas em um galpão com poucas aberturas, na mais completa organização, sem nenhum maestro que regesse nossos passos, foi maravilhoso. Não havia funcionários organizando as intermináveis filas que formávamos espontaneamente e nas quais não passávamos menos de duas horas, parecíamos ser conduzidos unicamente pelo desejo de caminhar de forma ordenada e respeitosa, sem atrapalhar o outro, e conseguimos!

Havia pessoas de todas as faixas etárias e oriundas de todos os extratos sócioeconômicos que compõem nossa sociedade ali representada, tratava-se, portanto, de uma multidão composta por muitas diferenças, mas unidas por um interesse comum: participar da Bienal do Livro. E essa era a bússola que nos guiava de maneira harmoniosa.

Também me chamava atenção o quanto o número dos que desistiam era pequeno, a maioria das pessoas se mantinha firme em seu desejo de entrar no evento. Outro fato peculiar, à nossa fama de “esperteza brasileira”, foi a ausência dos “espertinhos” que ficam com aquele jeito inocente de estar procurando alguém, para aproveitar e “furar a fila”. Pelo contrário, cada um esperava pacientemente por sua vez, sabia parar e prosseguir, o que nos obrigava a todos a esperar uns pelos outros.

Pode parecer para algum leitor uma situação banal, mas eu não percebi assim, meus atentos olhos e ouvidos se embeveciam com o cuidado que cada um tinha para manter o bem-estar seu e do outro. Enchi-me de esperanças mais uma vez, percebi naquela marcha cadenciada que somos muito melhores do que nos percebemos.

E amplio essa percepção também para nossos vínculos de intimidade, acredito que temos desistido, com bastante facilidade, de enfrentar nossas diferenças pessoais, temos perdido a cadência da caminhada interrelacional, porque parece que idealizamos e cobramos muito de nós mesmos e do outro. E esta simples, mas profunda experiência para mim pode apontar para outras possibilidades em nossos vínculos, exigindo para isso o respeito ao nosso ritmo e ao ritmo do outro. Oxalá nos lembremos disto.

Desesperar jamais…

Outra forte emoção que vivi, e sei que não estava sozinha, ocorreu quando recebemos a notícia em início de agosto deste ano de dois mil e quatorze que, após trinta e cinco anos de procura e luta, havia sido localizado o neto da criadora do movimento coletivo das avós da Praça de Maio, de Buenos Aires a senhora Estela de Carlotto.

Podemos realmente celebrar nossa condição humana de abnegação e amor, afinal, de que modo entenderíamos a luta de um grupo de senhoras, todas, avós de netos desaparecidos se reunindo no espaço público pra se organizarem em torno de seus direitos cidadãos?

Graças à intrepidez e obstinação dessas mulheres 110 crianças que haviam sido sequestradas pelo regime ditatorial argentino que vigorou de 1976 a 1983, foram reconhecidas por testes genéticos, a partir da criação de um banco genético de dados de pais torturados e assassinados pelo regime, e puderam se reencontrar com sua “outra história”, conhecer e abraçar pessoas de sua família biológica.

E quão grande foi o regozijo que vivemos quando Ignácio Hurban, nascido Guido Carlotto, seguiu suas dúvidas e inquietações sobre sua origem bilógica e por sugestão de sua esposa, fez o teste genético em Buenos Aires. Descobriu assim, que era o neto perdido de Estela de Carlotto, filho de sua filha Laura de Carlotto, e que nascera no cárcere, tendo sido afastado para sempre dos braços de sua mãe apenas cinco horas depois de haver nascido. Sua mãe Laura foi assassinada no cárcere, dois meses após o sequestro de seu filho.

Guido foi entregue a um casal de agricultores que desconheciam sua origem, e teve boa parte de sua inquietude ancorada no amor tão forte que tinha pela música, o que o levou a se tornar músico de profissão, fato que o diferenciava completamente de sua família adotiva. Descobriu após trinta e cinco anos, que seus pais bilógicos eram músicos amadores.

Em tempos de constante urgência e imediatismo no qual estamos mergulhados em quase todas as sociedades ocidentais, acompanhar essa experiência equivale para mim a seguir o trajeto de uma odisseia, uma grande aventura que precisa do tempo para que os fatos confusos possam ser esclarecidos e muitas vezes alterados, contrariando a agitação apressada que tanto nos contagia como humanos.

Saber quem somos de onde viemos e para onde vamos precisam ser as nossas grandes e maiores indagações como pessoas, e também poderão nos auxiliar a desenvolver nosso melhor, bem como poderá nos servir para ressignificar nossos laços relacionais: somos quem somos e não quem queriam que nós fôssemos, o mesmo se aplicando aos nossos próximos: íntimos ou não. E se desenvolvermos essa linha respeitosa entre eu e o outro, a cadência da dança relacional poderá ser reencontrada ou estabelecida.

E para finalizar…

Desejo ter até aqui contado a vocês algo sobre nosso “melhor” como humanos: nossa condição de saber quem somos e qual o sentido de nossa vida e assim podermos viver o grande desafio humano que o de respeitar a nós mesmos e ao nosso próximo numa cadência que amplie e qualifique as fronteiras do viver.

E para embalar essa encantadora jornada nada melhor do que um abraço! Meses atrás três meninas de aproximadamente nove anos, tocaram a campanhinha de minha porta e me deram um pequeno papel, que era um presente espontâneo delas para mim, e eis o que havia nesse papel: “um abraço pode curar muitas dores”. Diante disso eu vou ter que seguir esperançosa em nosso melhor relacional, e desejo que vocês funcionem como elos dessa corrente do bem, ok?!

Nessa sensível música do Jota Quest, há os tesouros finais desta reflexão, desfrutem de tudo isso que ele propõe.

Dentro de Um Abraço
Jota Quest

O melhor lugar no mundo
É dentro de um abraço
Pro mais velho ou pro mais novo
Pra alguém apaixonado, alguém medroso

O melhor lugar no mundo
É dentro de um abraço
Pro solitário ou pro carente, é
Dentro de uma abraço é sempre quente

Tudo que a gente sofre
Num abraço se dissolve
Tudo que se espera ou sonha
Num abraço a gente encontra

No silencio que se faz
O amor diz compromisso
Baby, baby dentro de um abraço
Tudo mais já está dito

O melhor lugar no mundo, é aqui
É dentro de um abraço

Por aqui não mais se ouve o tic tac dos relógios
E se faltar a luz fica tudo ainda melhor
O rosto contra o peito, dois corpos em um amasso
Dois corações batendo juntos em descompasso

Tudo que a gente sofre
Num abraço se dissolve
Tudo que se espera ou sonha
Num abraço a gente encontra

Tudo que a gente sofre
Num abraço se dissolve
Tudo que se espera ou sonha
Num abraço se encontra

Na chegada ou na partida
Manhã de sol ou noite fria
Na tristeza ou na alegria

Tudo que a gente sofre
(Na chegada ou na partida)
Num abraço se dissolve
(Manhã de sol ou noite fria)
Tudo que se espera ou sonha
(Na tristeza ou na alegria)
Num abraço se encontra

Tudo que a gente sofre
(Na chegada ou na partida)
Num abraço se dissolve
(Manhã de sol ou noite fria)
Tudo que se espera ou sonha
(Na tristeza ou na alegria)
Num abraço se encontra