Diálogos: desenho

por Luís César Ebraico

Normalmente, Ricardo, de nove anos, criava dificuldades para fazer as partes de seu dever de casa em que tinha que desenhar.

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O diálogo a seguir ilustra a maneira em que Paula, sua mãe, lidou com a inibição de desenhar do filho, após ter arejado o assunto com seu loganalista:

RICARDO: — Eu não gosto de desenhar!

PAULA: — Hmm, hmm.

RICARDO: — Eu não SEI desenhar!

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PAULA: — Entendi.

RICARDO: — Meu irmão Paulo desenha muito, mãe! Ele faz desenhos muito maneiros…

PAULA: — É, tem pessoas que têm talento para desenhar, outras têm talento para outras coisas.

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RICARDO: — Você é boa pra desenhar!

PAULA: — É verdade, eu sou boa para desenhar.

RICARDO (depois de algum tempo de reflexivo silêncio e com expressão de que fizera uma importante descoberta): — Ah, mas eu sou BOM EM CAPOEIRA!

PAULA: — Pois é, já eu não sou boa em capoeira…

Bem, o fato é que, após essa conversa, o menino começou a fazer sem maiores percalços os desenhos que a professora mandava como dever-de-casa. Por que será?

À época do diálogo transcrito, o menino estava começando a desenvolver uma FOBIA DE DESENHAR. Já havia demonstrado resistência a fazê-lo em ocasiões anteriores à conversa relatada acima. Essa fobia, é claro, tinha por objetivo evitar o contato com a sensação de inferioridade que lhe provocava a comparação entre, no que diz respeito a desenhar, seu pouco talento e o abundante talento do irmão. Para um loganalista, é cristalino que a maneira com que sua mãe conversou com ele sobre tal dificuldade impediu que essa fobia se instalasse, melhor ainda, dissolveu-a. Não alterou o nível de talento do menino, evidentemente, mas liberou-o para desenhar como qualquer pessoa normal.

E o que tinha essa conversa – note-se: levada adiante por um leigo – que boa escuta ela continha, que a tornou capaz de dissolver uma fobia? Anotem: NATURALIDADE. Desenvolvamos isso:

Eu atendia Isabel e Joana – como sempre, os nomes aqui são fictícios – uma logo em seguida a outra. O problema central de ambas era o mesmo: sentir culpa, para elas, não era simplesmente uma coisa desagradável, frustrante. Era traumático: frente a qualquer situação em que o sentimento de culpa fosse provocado, ficavam desorganizadas ou paralisadas – em uma palavra, FÓBICAS – incapazes de iniciar de maneira minimamente eficaz um processo – interno e/ou externo – de reparação.

Eu sabia, naturalmente, que o sentimento de culpa, nelas, atingira o patamar traumático porque seus “processadores verbais” de culpa estavam inoperantes e, em Psicanálise, chamamos de “resistência” o mecanismo psicológico que prejudica o bom funcionamento de um processador verbal. O trabalho clínico, como sempre, é encontrar a resistência e dissolvê-la. O processador fica liberado, reduz a emoção perturbadora – culpa, no caso – à condição meramente frustrante, despindo-a de seu caráter traumático e a FOBIA DESAPARECE.

Ora, toda resistência ao processamento de uma emoção tem sua raiz nas circunstâncias históricas em que se formou nossa personalidade: temos resistência a processar as emoções que as pessoas significativas de nosso ambiente infantil se recusavam a ouvir. Recusavam? Como é, exatamente, esse processo de recusa.
Isabel era atendida antes de Joana. Logo que ficou claro que seu grande problema era não conseguir processar sentimentos de culpa, comecei a pesquisar as condições históricas que deram razão a isso. Logo elas se tornaram evidentes. A mãe não permitia a Joana falar de culpa. Este era o diálogo típico, quando tal emoção estava em jogo:

ISABEL: — Mamãe, tô me sentido culpada porque não estudei Geografia para a prova! Olha só que vergonha: tirei dois!

MÃE: — Ah, que bobagem, filinha! Sentir culpa por causa disso! Eu sei que você não fez por mal! Na próxima você estuda! A culpa, na verdade, de seu pai, que viajou e deixou você assim nesse estado, desanimada e deprimida!

Sublinho: esse diálogo que chamei de “típico” era realmente típico. A mãe de Isabel mantinha coerentemente uma POSTURA FÓBICA relativamente a ver sua filha sentir culpa. Joana acabou internalizando a atitude da mãe e desenvolveu uma “resistência” a processar essa emoção, elevando-a, conseqüentemente, à condição de trauma.

No exato dia em que essa postura da mãe de Isabel ficou evidenciada, atendi Joana em seguida e também a charada relativamente à sua resistência se desvendou. A origem da resistência, aqui, não estava na relação de minha paciente com a mãe. Estava em sua relação com o pai. Vejamos, qual, nesse caso, era o diálogo típico:

JOANA: — Pai, tô me sentido culpada por não ter estudado Geografia para a prova! Olha só que vergonha: tirei dois!

PAI: — E está sentindo culpa SÓ POR ISSO? Devia sentir culpa por muito mais coisa, porque você só faz besteira! Blá, blá, blá, blá, blá, blá…

Contrariamente à mãe de Isabel, o pai de Joana tinha uma POSTURA ÁVIDA relativamente a ver sua filha sentir culpa e Joana acabou desistindo de processar as culpas QUE REALMENTE SENTIA, em virtude de haver internalizado uma relação que a pressionava a processar até aquelas que NÃO ESTAVA SENTINDO.

E uma ESCUTA NATURAL como seria? Ilustro, usando Ricardo e sua mãe

RICARDO: — Mamãe, tô me sentido culpada por não ter estudado Geografia para a prova! Olha só que vergonha: tirei dois!

PAULA: — É, foi chato mesmo! Está com ânimo para consertar isso na próxima?

Aprendamos, pois: no que diz respeito a nossa vida psicológica:

Escutas ÁVIDAS E FÓBICAS criam DOENÇA, a escuta NATURAL, SAÚDE.

Vale a pena atentar para isso.