Vítimas de eventos traumáticos nem sempre tornam-se violentas

por Fátima Fontes

Introdução
“Viva como se já estivesse vivendo pela segunda vez, e como se na primeira vez você tivesse agido tão errado como está prestes a agir agora”.
Viktor Frankl, criador da Logoterapia, Livro: O que não está escrito nos meus livros. Memórias. SP: É Realizações Editora, 2010, p.147

Continua após publicidade

Gostaria de usar nosso espaço reflexivo para tratar, neste texto, da responsabilização de nossas escolhas. Esse tema me vem à mente, sobretudo, neste momento de fim do folhetim novelesco Avenida Brasil, de João Emmanuel Carneiro, novela essa que parece ter mobilizado as forças emocionais da nação.

Estava com amigos na 5ª feira passada, dia 18 de outubro, quando subitamente a música ambiente parou de tocar e todas as telas de projeção do bar passaram a transmitir o penúltimo capítulo da trama novelesca. Tal fato me deixou perplexa: homens (às vezes pouco afeitos às novelas), mulheres e crianças pareciam hipnotizados pelo que viam: para meu espanto e desengano, ante aos nossos olhos passavam-se trapaças e violências embaladas em caixa e laços de fita de ‘justificadas violências’: “Ah, o Max mereceu morrer assim, ele era mal, etc… O sequestrador mereceu morrer, etc… ” Era essa uma parte da triste (a meu ver), murmuração local.

Confesso que isso ainda me choca, continuamos aplaudindo e dando audiência às pequenas e grandes violências, e com isso participamos ativamente do processo de banalização da violência, confirmando um modo de vida nua, tão bem estudado por vários estudiosos das relações sociais, dentre eles o italiano Giorggio Agamben.

Discordo veementemente dos que afirmam que a vida é isso, é aquilo que é veiculado nas telinhas e telonas de nossa Rede Globo: a vida é muito mais que isso, a vida é o que escolhemos fazer dela.

Continua após publicidade

Triste escolha por ‘valores que não edificam’

Engrosso o cordão dos que, em nosso país, se preocupam em ‘bater nas panelas’ para acordar as pessoas, que parecem ‘dormir eternamente em berço esplêndido…’, como cantamos em nosso Hino Nacional.

Sendo, assumidamente uma ‘dissidente’ Nacional, já que a novela aqui em questão comoveu o país, desejo mostrar nestas linhas que se seguem, a tinta ‘invisível’ com que foi escrita a trama que assistimos.

Continua após publicidade

Apesar de tentar acompanhar um capítulo inteiro, nunca consegui: o máximo permitido por meu estômago, que começava a embrulhar, foi de duas partes de um capítulo. Mas foi o suficiente, assessorada, claro, pelo tititi geral que me explicava o enredo, para pescar alguns dos elementos que compuseram as estórias ali desenhadas.

Começo pela escala de valores. Vimos ser diariamente apresentado, com lastimável naturalidade, um verdadeiro rosário do ‘lixo relacional humano’: mentiras, traições, trapaças e vitimizações apareciam como arcabouço, como esqueleto da trama narrada, recheado com as irresponsabilidades que nos fazem ‘vítimas’ de nossas próprias escolhas.

Todos os envolvidos nas histórias, dos mais hilários aos mais bestiais, carregavam o ‘conhecido escudo’ das justificativas que, evidentemente, era sempre o outro: se alguém errava e isso era o lugar comum, havia sempre um álibi que isentava os protagonistas de qualquer autocrítica sobre sua ação inadequada.

Logo, foi possível acompanhar uma escalada progressiva de violências que culminou com uma pessoa sendo ‘linchada’ friamente por vários ‘vingadores’. Também a personagem vilã da trama tem seu final coletivamente abençoado, uma vez que ela só fez o que fez porque foi alvo de um pai abusivo emocional e sexualmente.

Por favor, hipnotizados, convenhamos: os desencaminhamentos de uma pessoa abusada são muito complexos e foram reduzidos nessa história apresentada. Afinal, nem todas as pessoas submetidas ao trama, a ele sucumbem. Menos ainda, obrigatoriamente escolhem passar sua vida em planejamentos vingativos. Se auxiliadas,e para isso precisam pedir ajuda e muitos o fazem, poderão até saltar de suas adversidades para caminhos de crescimento e transformação pessoal e social.

 Outra história é possível

No contraponto da ‘escolha ‘ de vingança, existem várias histórias de superação pessoal e escolhi uma delas para nos auxiliar aqui.

Trata-se da linda mulher Waris Dirie, a primeira modelo africana a ter um contrato permanente com a poderosa fabricante de cosméticos Revlon. Sua história é veiculada nas várias mídias e provam que pessoas submetidas a longos e profundos sofrimentos podem ‘brotar’ no deserto de suas vidas.

Em 1997 ela escreveu seu primeiro livro intitulado “Flor do Deserto” e posteriormente mais outros três. Com eles, pode revisitar suas angústias e declarou haver descoberto que ao longo da existência, em muitos momentos o amor e o sofrimento estarão conectados.

Ela nasceu no deserto da Somália e nele viveu em absoluta situação de carências e privações de todas as ordens. Era agredida fisicamente pelo pai, como forma de ser educada, de se lhe forjar um caráter, e aos cinco anos foi levada para fazer a ‘ablação’: extirparam seu clitóris e os pequenos lábios da vagina. Após costurarem a ferida, o que restou do orifício vaginal era somente suficiente para passar a urina e a menstruação.

Teve uma irmã que morreu logo após a ablação e isso a marcou muito para que um dia pudesse fazer algo pelas mulheres de seu país, para eliminar essa causa de sofrimento e morte.

Ela fugiu da Somália para não casar com um homem de 65 anos e na travessia precisou cruzar o deserto. Dos perigos vividos, um confirmou sua existência: ela despertou um leão (o animal real) e olhou-o bem nos olhos e lhe disse: “ comam-me. Estou preparada”, e ele se foi. Ela conseguiu contato e foi ajudada por uma tia que morava em Londres e era casada com um diplomata.

Vinte anos depois voltou a se reencontrar com sua família e pode reviver assim, concretamente, sua própria história de fé e pujança. Seu pai estava cego e lhe disse que ambos eram muito parecidos, muito fortes, o que muito a comoveu.

Após longos anos como modelo, tornou-se embaixadora das Nações Unidas, percorreu a África e conseguiu que 15 países penalizassem a mutilação feminina. Criou a fundação Desert Dawn (cujo sentido pode ser compreendido em nossa língua como: amanhecer no deserto, para lutar pela violência da mutilação feminina.

Hoje se dedica também ao filho Aeeke, de 13 anos.

Conclusão: a novela acabou, mas a vida segue o rumo que lhe damos

Aqui estamos terminando mais esse encontro reflexivo. Desejo ter acrescentado algo ao nosso mundo pessoal e relacional, ainda mais ao mundo de nossas escolhas.

Tomara que possamos pautar nossas ações em outra escala de valores, mais edificante: na qual a primeira e grande premissa seja o amar, naquele sentido mais biológico (defendido pelo biólogo chileno Humberto Maturana) do termo: a capacidade de deixarmos e de estarmos tranquilos diante do outro. OK?!

E para não fugir de nossa tradicional proposta de usar os poetas para encerrar nossas conversas, escolhi para esse desfecho o nosso amado poeta português Fernando Pessoa:

“Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu”. (Fernando Pessoa, Obra Poética, RJ: Editora Nova Aguilar, 17ª reimpressão da terceira edição, 2001).