Tanatos e Eros: as várias faces do amor

"Um amor assim violento/ Quando torna-se mágoa/ É o avesso de um sentimento/ Oceano sem água/ Ondas, desejo de vingança/ Dessa desnatureza/ Batem forte sem esperança/ Contra a tua dureza" – Caetano Veloso – Queixa

Nesses versos Caetano revela a fase primal do amor, onde este sentimento caminha ao lado do ódio. Essa dualidade inquietante, com certeza, motivou e levou o ginecologista, especializado em sexualidade, Malcolm Montgomery a escrever o seu novo livro Dez Amores – Editora Gente, completando uma trilogia iniciada com seus dois livros anteriores Mulher, amálgama do seriado da Rede Globo, do qual foi consultor, e O Novo Pai.

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Malcolm explica que o caminho para se atingir o verdadeiro amor é árduo. Mostra que para ser feliz na vida, o ser humano precisa encarar um duplo desafio: desenvolver o amor, atrofiar e administrar o ódio. Vencidas estas etapas chega-se no verdadeiro amor, que é a gratidão.

Nesta entrevista ao Vya Estelar, Malcolm apresenta 10 dicas para um amor saudável.Desvenda as varias faces do amor e os mecanismos das relações amorosas. Explica como oscila a tênue fronteira entre o amor e o ódio. Fala sobre a relação de poder e o culto à imagem do corpo. Mostra o fenômeno da atração e a diferença entre solidão e estar só.

Vya Estelar – Por que dividir o amor em tantas faces?

Malcolm – Na vida, através da experiência, vivemos vários amores e o caminho final, do verdadeiro amor, passa pela gratidão. Primeiro vivenciamos o amor pelo pai e pela mãe. Em seguida, vem o amor pelos brinquedos, depois pelos irmãos. Na adolescência, vivemos o amor idealizado da paixão. Depois a desmistificação deste amor.

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A luz no fim do túnel

Para chegarmos na gratidão, precisamos experimentar o amor pelo trabalho, mas antes temos que passar por dois processos, ou seja, o amor pela auto-estima e o amor pela auto-imagem.

Vya Estelar – Como o amor se transforma em ódio tão repentinamente?

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Malcolm – Na realidade, o amor não se transforma em ódio. Numa forma um pouco mais primitiva de amar, antes do amor chegar no estágio da gratidão, amor e ódio caminham juntos lado a lado.

Vya Estelar – Qual é a origem desta relação amor/ódio?

Malcolm – A relação desta origem passa pela dependência. Para desenvolver o amor é preciso saber que o ódio está ali ao lado. Você se desenvolve amorosamente através das experiências de vida. Com o tempo, você desenvolve uma boa simbologia amorosa e passa a administrar melhor o ódio, porque você passa a se dar melhor com as situações de perda.

Sujeito e objeto

Nesta relação, o que você ama não é o sujeito e sim o objeto que sustenta as projeções do seu ego, as projeções dos seus sonhos. Você fala com seu desejo ao outro, o outro é um objeto. Quando não conseguimos sair deste estágio, facilmente trocamos um objeto por outro. Quando você passa a amar o sujeito, é o momento em que você cai na real e passa a conviver com as diferenças do outro. Neste caso, o objeto de sua paixão foi desmistificado.

Vya Estelar – Como você explica o caso do estudante de medicina que metralhou as pessoas no Shopping Morumbi em São Paulo?

Malcolm – A questão ali é patológica e passa também pela solidão. O ódio vem recheado de poder. As raízes da agressividade humana estão entrelaçadas nas bases do amor, da sexualidade, da violência e da arte. Somos animais gregários. Necessitamos de apoio e reconhecimento familiar e social. Acho que foi por aí que rolou a tragédia no Shopping Morumbi em São Paulo.

Vya Estelar – E o caso do Diretor de Redação do jornal "O Estado de São Paulo", o Pimenta Neves?

Malcolm – No caso dele, era o desejo obcecado de exercer e controlar o poder. A relação de dependência era esta. A partir do momento que a Sandra não quis nada com ele, todo o ódio veio à tona, porque ele não suportou perder o poder que exercia sobre ela. Era um escravo deste poder. O poder é uma droga tão violenta como a cocaína.

Vya Estelar – Nesta tênue fronteira entre amor e desamor teria algum tipo que é o mais grave?

Malcolm – Todos os tipos de amor e ódio se tornam graves, quando você se fixa neles. Quando o ódio aflora, vem por traz a inveja e a competição. Mas a partir do momento que você identifica a inveja, ela pode ser suplantada.

Vya Estelar – Por onde passa a questão da inveja?

Malcolm – Vou dar um bom exemplo que é a dualidade entre mestre e professor.

"Ensinar é um gesto de amor".

O Mestre

O mestre fica feliz com o progresso do seu aluno, mesmo que este o supere.

O mestre forma.

O mestre gera discípulos.

O mestre desperta em você a vontade de aprender.

O mestre se impõe pela autoridade conquistada e é respeitado e admirado pelo aluno. O professor

O professor fica com inveja.

O professor informa.

O professor gera ex-alunos.

O professor despeja o aprendizado.

O professor se impõe pelo poder.

Vya Estelar – Por que algumas pessoas vivem de bem com a vida e outras fazem justamente o contrário?

Malcolm – Este fato é misterioso (mágico!) que podemos classificar de inato, genético ou cósmico, certas pessoas parecem programadas para enfrentar desafios enormes, não se abatem com o fracasso e permanecem na fé instintiva e inabalável.

Curva de Gauss

Na curva de Gauss, "tipo uma montanha", você tem no centro os "normais" ocupando a região central desta montanha, indo da base até o topo. E nos extremos, as exceções. De um lado, está a minoria que enfrenta com muita força de vontade as adversidades da vida. No extremo oposto, pessoas que recebem de graça todos os instrumentos possíveis para estar de bem com a vida. Porém, não conseguem fazê-lo. Portanto, não existe a equação linear: pais b bons – pais maus = filhos maus.

Vya Estelar – Como os adolescentes encaram esta relação amor e ódio?

Malcolm – Adolescentes encontram uma maneira simples de lhe dar com o amor e o ódio, porque são dependentes e desamparados.

"O amor eu deixo para os meus amigos maravilhosos e perfeitos e o ódio vai para o meu irmão mais novo, que não entende nada e insiste em brincar comigo."

Vya Estelar – Porque os adolescentes entram com facilidade nos relacionamentos?

Malcolm – Porque se acham onipontentes e idealizam tudo. Por isso conseguem entrar com mais facilidade nas relações. A pessoa mais madura entra mais devagar, porque sabe que tem que administrar as diferenças de um relacionamento.

Mitos:  as meninas nunca engravidam;  as drogas nunca viciam; acidentes de carro só acontecem com otários; para passar de ano basta dar uma lida na matéria nas vésperas da prova final.

Vya Estelar – O que uma pessoa espera da outra num relacionamento amoroso?

Malcolm – Esta atração acontece por pactos inconscientes, ou seja, o que vem por traz. Escolhe-se uma pessoa que represente a possibilidade de satisfazer as necessidades afetivas e sexuais. O mais interessante é que todas as qualidades desse "eleito" são idealizadas.

Na prática:

Pactos inconscientes

A companheira responde às minhas necessidades.

Eu a projeto e invento.

Eu me identifico.

Solidariedade total.

Dependência mútua

Ela me completa.

Ao seu lado sou um relax

Soldagem fusão

Ela é o ar que eu respiro, se faltar, eu morro sem ar.

Conclusão

O apaixonado resolve se casar com a amada. Legaliza e assegura o direito da posse: "Vai ser minha para sempre". A posse gera o poder e, como já disse, o poder gera o ódio, quando este pacto for quebrado.

O lado positivo

O sonho de uma grande paixão é fundamental para avançar no amor e, devagar, entrar em contato com o nosso ódio para identificá-lo e suplantá-lo.

Vya Estelar – Quais são as dicas para se construir uma boa relação?  

Indivíduos capazes de cuidar de si mesmos.

Autonomia emocional e financeira.

Brigar a briga certa, vencer a inveja, a vergonha e adquirir a identidade plena. Assim canalizam seu ódio na medida e na direção certa.

Alcançar grau de maturidade suficiente para administrar crises pessoais e conjugais com bom senso e coerência.

Cultivar carreiras próprias, amigos próprios e uma vida pessoal gratificante.

A opção de estarem juntos depende exclusivamente do amor e não de necessidades emocionais insatisfeitas.

Ambos têm espaço para crescer e capacidade de se realizar plenamente.

Não fogem das contradições, tentam iluminar com cuidado seus obscuros porões.

Sabem o que podem dar ao companheiro e o que pedir.

Caminharem juntos, diariamente, abrandando as diferenças.

Vya Estelar – Por que a comunicação acaba nos relacionamentos?

Malcolm – Porque cada um fala consigo mesmo, com seus próprios desejos no outro. Não fala com o outro! Na verdade, o amor não muda nada. Simplesmente, administra o que é.

Vya Estelar – Qual a diferença entre solidão e estar só?

Uma das maiores geladas da solidão é não ter prazer em ser seu companheiro.

Solidão é não saber quem você é e esperar que os outros lhe digam.

Solidão é esperar ser tocado.

Solidão pede abrigo e proteção.

Solidão é viver de acordo com uma imagem.

Solidão é sonhar o sonho não realizado.

Estar só

Estar só é saber que apenas você pode dar as respostas ou saber agüentar ficar sem elas.

Estar só é movimentar-se em reação aos seus desejos.

Estar só é acreditar no próprio colo.

Estar só é viver.

Estar só é ser capaz de sonhar um novo sonho, vencendo sua solidão, sua vergonha e seus desgostos.

Vya Estelar – Com sua experiência de consultório, como você avalia a sexualidade dos brasileiros neste momento?

Malcolm – Acontece uma objetivação do sexo. As pessoas acham que se tornando objetos vendáveis, o sexo vai ficar melhor e não vai.

Vya Estelar – Como você avalia o culto ao corpo?

Malcolm – Trata-se de uma estética complicada. Como se não houvesse mundo interior. Só a fachada resolve. Existe um investimento exagerado na imagem, um terrorismo estético, uma escravidão. As pessoas sofrem afetivamente, ficam desestruturadas e se tornam sexualmente desfuncionais.

Mulher objeto

Escravas da imagem, realizam uma busca eterna pelo poder através da imagem. As mulheres não querem ser mais amadas elas querem o poder. E nessa busca pelo poder, competem ainda mais com o homem. Passam a ter o homem como uma forma de alavanca para subir socialmente. Seria um retorno da mulher objeto; o que as minhas colegas na década de 70, batalharam para desmistificar . Isto gera violência, como já comentei, o caso do Estadão é um exemplo.

Homem objeto

O homem, através do narcisismo, vai em busca da gloria e a mulher busca a vaidade excessiva. Ambos estão sendo editados num modelo só de poder, cada um pelo seu caminho. E isto acaba com a contradição e a diferenciação, que é a base do relacionamento amoroso, ou seja, a diferença. Sem diferença não se desenvolve o amor. As pessoas se deprimem e se somatizam em função desta busca doentia do poder.

Vya Estelar – O que é resgatar, na prática, o caminho do amor?

Malcolm – Quando vencemos o desamparo, a inveja e a vergonha podemos chegar ao último estágio do desenvolvimento amoroso, que é a gratidão. Quando você chega na gratidão, você amplia o seu amor e passa a ter vários amores. Você ama a sua cidade, então passa a exercer a cidadania e pensa no social. O amor é a gratidão, o que vem antes é o afeto, ou seja, amor e ódio lado a lado.