Votar no paredão é uma forma de se ‘sentir’ Deus

por Roberto Goldkorn

Uma das imagens que mais marcaram a minha vida foi quando o rechonchudo padre Pires, da 'minha' igreja, disse em tom quase apoplético: "Deus tudo vê, tudo ouve, tudo sabe. Não adianta querer esconder nada d'Ele, é inútil, ele sabe de tudo. Ele está em todos os lugares, e até dentro da sua cabeça. Ele sabe até dos seus pensamentos mais secretos!"

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Eu devia ter uns oito ou nove anos, sai da igreja em transe, tremendo de medo, e fiquei marcado por essa descoberta. No início, me apavorei: "E se Deus visse o que eu vi, escondido, meu pai e minha mãe fazendo num domingo à tarde?" Vergonha, arrependimento, desespero. "E se Deus soubesse dos meus pensamentos, inconfessáveis: meus desejos pecaminosos de matar o meu pai, de sair voando pela janela, ou roubar a bola de futebol (oficial e de couro) do vizinho?"

Mais tarde, esse temor do Olho Divino (e de seu julgamento) foi sendo substituído por uma espécie de inveja. Eu também cobiçava um pouco daqueles superpoderes. Fantasiava ser um Super-Homem, ter olhar de raios-X, poder atravessar a intimidade das paredes espessas, e ver o que se passava ali. Mais do que espiar pelo buraco das fechaduras, eu fantasiava os poderes de espiar dentro das mentes alheias, e dos corações, para não ter de recorrer ao (já na época) antiquado recurso do bem-me-quer/mal-me-quer. Esse voyeurismo divino, infantil em sua origem, só muito depois foi racionalizado quando percebi, tratar-se de uma característica arquetípica e universal.

Por isso (não só) que o BBB faz tanto sucesso, não só aqui como em todos os países em que é exibido, inclusive nos muçulmanos. Porque a maioria de nós tem a nostalgia das fantasias infantis do "Olho de Deus", como disse muito bem o saudoso psicanalista Eduardo Mascarenhas, em seu livro Brasil de Vargas a Fernando Henrique. Mas prefiro citá-lo nominalmente: "… todos nascemos infantis, profundamente infantis, e interpretamos e assimilamos o mundo, de modo forçosamente infantil. Nada é internalizado, nada se torna 'realidade' para nós, nada é percebido sem essa radical transfiguração pueril. Claro, uma criança só enxerga o mundo com seus próprios olhos. O edifício das racionalidades adultas é construído de argamassas pueris. Infantil – essa é a natureza dos nossos fundamentos. Toda racionalidade é construída a partir dessa transfiguração originária; a qual deixará para sempre as suas marcas. Logo a 'racionalidade' é filha da 'irracionalidade'. A criança é o pai do homem. Todo homem é, basicamente infantil".

Assim, se explica o porquê das assombrosas votações na sua última edição (BBB5) que, segundo o site do programa, o Paredão ultrapassou os 30 milhões de votos. E se explica também a reação raivosa ou desdenhosa de quem não gosta do programa (porque já se acha adulto, e racional o suficiente para essas baboseiras irracionais). Isto para nós que somos crianças desprovidas de poder, meros joguetes do destino, vítimas indefesas e perplexas dos tsunamis da vida.

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'Olhos de Deus': no dia do paredão ou do 'juízo final'?

Diante do reality show BBB, podemos recuperar um tiquinho do poder, podemos ver através dos nossos olhos eletrônicos e ouvir, através do nosso áudio onipresente, tudo ou quase tudo, que eles mesmos, ali na casa não podem.

Como um Deus (quase) todo-poderoso, sabemos de tudo, julgamos, e decidimos o destino deles. Observamos os Brothers (significativo não?) como achamos que Deus nos observa, 'nos mínimos detalhes', decidimos a 'vida' deles assim como achamos que Deus decide a nossa – nem sempre de forma justa, nem sempre (ou quase nunca) de forma compreensível.

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A turma dos 'gigantes' da casa do BBB, diante de uma derrota acachapante, fica perplexa, e não consegue uma leitura correta dessa 'lógica'. Eles não percebem o que nós percebemos, por algum mecanismo estupidificante, acham o público (nós/Deus) falhou, que não percebeu o quanto os outros (os inimigos) são falsos, maus e injustos. Eles, pelo mesmo mecanismo estupidificante, não percebem que nós, o público/Deus, vemos os seus olhares enviesados, os rizinhos zombeteiros, os pequenos e grandes gestos agressivos, rejeitadores. Eles, atolados na realidade do confinamento (assim como nós, atolados na nossa realidade de ilusões, e limitações planetárias naturais), não conseguem disfarçar seus preconceitos, sua raiva, sua dificuldade para lidar com as diferenças ou para ocultar suas naturezas pessoais.

Saudáveis, jovens, tratados com mordomias inimagináveis para as suas vidinhas de classe média, eles provam do fatídico veneno da convivência forçada, dos choques das diferenças, e tudo isso escancaradamente devassados!

Quando Jean Paul Sartre escreveu seu Huis Clos, sabia do que estava falando, e nós, vendo o carma instantâneo dos Brothers, nos esquecemos por instantes do nosso, dos nossos patrões vampiros, dos nossos vizinhos diabólicos, do marido que nos inferniza, das armadilhas do destino em que fomos nos meter e achamos (como os participantes do programa), que estamos presos, irremediavelmente cativos daquela ilusão, que ao contrário deles não vale um milhão.

Quando observo a vida de alguns amigos ou clientes, sendo julgada e recebendo uma votação esmagadora, tento imediatamente encontrar os 'sete erros'. Ao perceber que, essas pessoas diante de um tal julgamento do 'destino', reagem indignadas, procurando ora culpar a outrem, ora, apontar o dedo para o próprio Big Brother que está no Céu santificado seja, descubro o sétimo erro. O erro do egocentrismo infantil, do pueril engano de que somos o centro do mundo, e tudo que acontece, acontece por nossa causa ou para nossa causa. Gostamos do BBB, como os gregos antigos se deleitavam com a tragédia cênica.

Não pensem que estou delirando em comparar o teatro grego, com o BBB. Ou vocês acreditam que a patuleia grega ia ao teatro, para se deleitar com a excelência da direção de atores, ou com o texto magnífico de Ésquilo? Não, ia para fazer a catarse! Ia para ver no palco (a uma distância segura) as suas mazelas, as suas imperfeições, a sua mesquinhez, ia para ver a casa cair (no palco),e eles se safarem ilesos. Saia dali com a alma lavada, achando que "Graças aos deuses do Olimpo, eu não estava representado ali, naquela farsa trágica".

Não posso dizer que todos os picos e abismos da alma humana estão representados na casa do BBB, mas há o suficiente para um bom aperitivo. Acredito que Deus, como nós, obtém um certo gozo, ao ver desfilar diante de si (imaginem o tamanho da telona de Deus), o drama da existência humana. Talvez Ele, assim como nós, sinta um misto de admiração e inveja por esses seres confinados na casa chamada Terra. Às vezes nas minhas fantasias mais alucinadas, "vejo" o Big Boss lá no Céu, dando um tempo na sua apertada agenda cósmica, dizendo para seus auxiliares: "Liga aí o canal da Terra, vamos dar uma espiadinha".