Ato de viver deveria ser uma experiência de aperfeiçoamento constante

Por Regina Wielenska  

Hoje o canal GNT nos apresentou um chef chamado André Saburó, no oitavo programa da primeira temporada da série Chefe Brasileiros. Quem assina o canal pode assistir ao vídeo.

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Foi fascinante ver como ele fazia uso em seus sushis de lâminas finíssimas de lardo curado, a gordura extraída das costas de porcos orgânicos, carne e gordura curadas numa fazenda no interior de Pernambuco.

Humilde, reconhece ser igualmente complexo e trabalhoso partir de um raro exemplar de atum até chegar à lâmina impecável de peixe do sushi, quanto criar um porco orgânico; promover um abate que reduza o estresse do animal e processar cada peça para a cura.  No entanto, infinitamente mais bacana foi ouvir o relato sobre como o pai o educou, testou seus propósitos, o recompensou de modo coerente por seus esforços e muito mais.

O chef encara a vida como uma experiência de aperfeiçoamento constante, um valor que o casal de psicólogos Bob Kohlenberg e Mavis Tsai, criadores da Psicoterapia Analítica (FAP), salientam como importante para uma vida plena. Vejam o que o chef, pernambucano filho de japoneses, disse enquanto metodicamente retalhava um atum enorme, um dos maiores exemplares da espécie: “Na hora que eu estou abrindo o atum, vem todo o estudo, e tem sempre aquele pensamento assim: eu posso tentar fazer melhor da próxima vez, eu vou tentando acertar mais. Tô cada vez tentando melhorar.”

A casa de sua infância, em Recife, tornou-se seu restaurante, muito bem cotado na atualidade. Ele valoriza o ambiente físico que o rodeia, mantém na melhor forma sua casa antiga. O respeito por um ambiente físico acolhedor, de qualidade, também é sugerido pela FAP.

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Interessante ele ter notado que os jovens ficavam intimidados com o visual mais clássico e refinado do restaurante original. Sensível à diversidade, aberto às novidades e às demandas de outros públicos, criou sua segunda casa, com um décor baseado na cultura pop do Japão. Ousa então quebrar as regras da cozinha japonesa clássica, oferece torradinhas com cogumelos. Oferece sushis veganos, delicados e belos. Só quem conhece muito bem os fundamentos de sua arte consegue inovar sem fazer disso um patético pasticcio gastronômico.

Na companhia da mãe escolheu um terceiro ponto, e no local montou um painel fotográfico fabuloso.  Honrou a memória de seus avós e pais, que chegando no Brasil em 1941, tempos dramáticos, foram colher café no Paraná. A parede da terceira casa mostra cada fase da vida deles, da relação com a gastronomia, o trabalho disciplinado na fábrica de processamento de peixe em Recife, depois vendendo pasteis na praia, mais tarde abrindo a lanchonete Tokyo’s. “Meus pais me passaram uma herança, a herança verdadeira são os valores que eles conseguiram passar”,  diz o chef.

Saburó cursou o High School nos Estados Unidos, um sinal da crescente prosperidade dos pais, fruto de muito trabalho. Deveria continuar seus estudos lá, mas de férias aqui percebeu que as lides familiares na cozinha eram exatamente o que queria ter como projeto de toda uma vida. Era 1994, o pai o chamou de louco, não se conformou com a escolha e o indagou o rapaz com firmeza. Obtendo o firme sim como resposta, providenciou um avental de PVC e um boné de cozinha e o colocou para lavar pratos. Quatro meses seguidos no setor de lavagem, e Saburó não se intimidou. Supunha ser este o jeito que o pai escolhera para fazê-lo desistir ou que o punira por desistir da universidade no exterior. “Sabe por que eu te mandei para trabalhar na pia? Você não quer cozinhar? Então, na pia você aprendeu a ser rápido, organizado e higiênico. Na cozinha, o cozinheiro precisa disso”.

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Conversa e prática no mundo real

A seguir, o pai decidiu promovê-lo para outro setor, como garçom, porque o filho era muito tímido e precisava praticar o convívio com pessoas diversas. Um dia o pai lhe transferiu para ser caixa do estabelecimento. E, passo a passo, o filho teve contato com os detalhes do sagrado ofício familiar. Interessante notar que parte dos ensinamentos foram transmitidos verbalmente, sob a forma de regras, dicas. Mas boa parte da aprendizagem ocorreu sob a forma de contato direto com o cotidiano do restaurante, em todos os setores. Terapia também é assim, parte é conversa, parte é pratica no mundo real. Um sem o outro não funciona.

André leva o filho Kenzo para conhecer a fazenda de sua fornecedora de lardo e café de grãos selecionados.  Parece um simples passeio, mas creio que ele está a ensinar o garoto alguns aspectos distintivos de sua vida, como valorizar o trabalho manual, o respeito ao meio ambiente, o conhecimento profundo da arte que se abraçou como ofício, o respeito a tradições seculares, como o cultivo de café naquela fazenda.

Saburó faz com o filho o que o pai fez com ele, recorda-se de frequentar o Mercado São José, famoso em Recife, desde os nove anos, acompanhando o pai, seu Shigero Matsumoto, na aquisição de peixe e outros suprimentos para o restaurante. Para o filho era passeio, para o pai, trabalho de responsabilidade. Exemplos ensinam, já demonstrou a Psicologia.

Foi comovente ouvir como o pai comunicou o filho, este assombrado pela notícia, de que já era um chef, e não apenas o cozinheiro do estabelecimento familiar. Isto foi um tipo de validação, um comportamento importante para construir sentimentos de autoestima e confiança num jovem. Note que não era elogio gratuito, foi a justa constatação do resultado de um processo formativo longo e minucioso. Elogios gratuitos produzem comportamentos nocivos.

O pai ficou doente e faleceu cerca de um ano depois de passar a casa para o filho, e este sentiu nos ombros o peso das lembranças constantes de que o pai se fora. “Mas isto virou uma força, um jeito de você honrar, o jeito é seguir, botar tudo prá frente”, afirma André. Praticar corrida faz parte do cotidiano do chef, ele cuida de seu corpo respeitosamente, outro tipo de valor preconizado pela FAP.

O chef diz que luta para que seus filhos trabalhem com algo que gostem muito de fazer, a gastronomia pode ser um caminho, penso eu…