Tem valido a pena viver?

Por Fátima Fontes  

Introdução

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“O sacro[sagrado] é a ligação invisível que mantém unidos espaço e tempo, é o primário sinal perceptivo das paixões, dos símbolos, dos lugares, da história, em cujos limites nossa vida se consome.”

 (Mauro Maldonato, no livro A subversão do ser. Identidade, mundo, tempo, espaço: fenomenologia de uma mutação. São Paulo: Peirópolis, 2001, página 173).

Quando comecei a construir essa reflexão vivíamos como mundo relacional aqui em São Paulo, o impacto causado pelos suicídios de alguns adolescentes oriundos de camadas médias altas, em grandes escolas privadas da cidade.

Passaram-se duas semanas e estamos diante de um caos social e econômico que levam nossos olhares e angústias para outras inquietações, para aquelas que se ligam às necessidades mais imediatas, questões de vida, a partir da greve nacional impetrada pelos caminhoneiros e transportadores de cargas.

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Como vida e morte se encontram nessa tênue linha de nosso existir, decidi manter-me refletindo sobre a morte e o morrer de pessoas que “teriam tudo” para viver.

A banalização do viver: sem sentido para a caminhada

Decidi ouvir algumas entrevistas que especialistas das diversas áreas que envolviam os suicídios juvenis aqui em São Paulo deram à mídia escrita, programas televisivos e redes sociais, e confirmei que apesar de algumas delas se fundamentarem em teorias e pesquisas nos campos da educação e da saúde mental, pouco ou nada se falou acerca do “sentido da vida”. Esse, portanto, passa a ser meu ponto central nessa reflexão. Identifico, e não é de hoje, a absoluta banalização do viver que atravessamos, mundialmente, há  muitas gerações.

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Tanto que, estamos celebrando nesse ano de 2018, os cinquenta anos do “maio de 1968, em Paris”, momento de levante juvenil, que em verdade só reivindicava melhorias no ensino universitário da época, localmente em Paris e que também possuía um desejo imenso por se revoltar contra os padrões morais estabelecidos no momento. Ou seja, os jovens daquela época, não eram diferentes dos nossos: não sabiam a que viviam, nem claramente o que queriam, protestavam basicamente por protestar.

O Movimento de levante juvenil, porém, foi incorporado por adultos insatisfeitos com seus labores, que viram naquele arrobo juvenil uma pecha para cruzar os braços em fábricas e indústrias, reivindicando suas melhorias em turnos e salários. Mas para fazerem isso, e cooptarem os jovens um tanto quanto “perdidos”, eles entraram como “apoiadores” das lutas universitárias.

Vejo nisso tudo, mais do mesmo: seguimos, ao longo das gerações sem dar atenção ao vazio deixado em nossas construções sociais pelo “sentido da vida”. Para que existimos? Pelo que vivemos? Como seres socializados e escolarizados, temos uma pauta de conduta social que exige: estudo, compromisso, construção de uma autonomização financeira, para que se possa viver a vida que se quer viver, já que a infância e a adolescência são recheadas de obrigações.

E nesse “o que se quer viver”, voltamos a milênios de uma luta social hedonista que o que mais se quer é “fugir da dor” e buscar o “prazer”, individual, claro.

Penso que é esse o mundo vazio que tem envolvido nossos jovens também de hoje: eles olham para seus pais, e se esses são de uma classe média e média alta, os encontram como modelos de um “consumo desenfreado”, para preencher seus vazios, ou se pertencem às camadas menos favorecidas, os miram em sua luta infernal e malsucedida para atender às necessidades básicas de suas famílias.

Parecem adultos “amaldiçoados” sejam pais ou cuidadores ricos ou pobres: carregando, como o Mito de Sísifo, uma pedra que rola diariamente para baixo da montanha, e que até o fim da vida, a levarão de volta para cima. Sem nenhuma razão para isso: afinal cumprem uma maldição.

Em outro momento falaremos da necessidade de “anestesiarmos” essa tarefa amaldiçoada com drogas de várias origens e tipos: álcool, a mais usada, anunciada e legalizada de todas; as substâncias psicoativas; as várias compulsões que vão se criando em nosso psiquismo: comer, trair, apostar, comprar, se prostituir, consumir, viver da vida dos outros em redes sociais e … uma interminável lista de “tapas buracos existenciais”.

Será que esses jovens atuais, mirando as costas infelizes e vazias de seus socializadores, encontrarão algum sentido para suas vidas? Estou segura que não.

As inquietantes questões do viver que surgem quando se começa a pensar

E aí entra o outro ponto que também não foi elencado pelos “especialistas de plantão”: os adolescentes e jovens, longe de serem “aborrecentes”, como se costuma chamá-los, iniciam na adolescência a mais importante função psíquica da mente humana: o pensar. Essa nova função que foi tão bem estudada pelo psicólogo russo Vygotski, será estabelecida na mente adolescente, pelos elementos que se passam dentro dele mesmo, seus medos, angústias e inquietações e pelo que ocorre em suas inter-relações pessoais.

Sendo assim, eles não aceitarão mais o “faça o que eu digo”, mas “não faça o que eu faço”, de pais e educadores. Eles buscarão em seus mitos identitários, por “novas figuras” em quem se espelhar, e aí correrão sérios riscos. Uma vez que estarão ávidos por “verdades”, sem uma crítica completa por quem as apresenta.

Poderemos iniciar nessa fase da vida um passeio cultural, histórico, antropológico, social e espiritual, pela mão dos que se tornaram, até nossa maioridade, responsáveis legais por nossos destinos. Nessa nova jornada, esse pensar juvenil poderá ser enriquecido por elementos que servirão de novos símbolos, a darem sentido ao nosso existir.

Mas o que dizer de pais, responsáveis e educadores, fechados em copa, enrijecidos pelas maldições de seus trabalhos, que perderam a alegria de viver e o sentido de suas próprias vidas?

Aqueles que detêm recursos financeiros querem promover o “consumo cultural”, quase sempre “copiado” de quem tem mais posses que eles: intercâmbios, viagens, que por vezes ao “retornarem” pouca coisa, ou nada acresceram ao seu “sentido de viver” e de seus filhos.

Por outro lado, os que nada possuem economicamente, anseiam por se livrar dos fardos que passaram a ser as necessidades desses filhos, que agora crescidos, precisam levar a “pedra amaldiçoada” ladeira acima e abaixo com eles, ou em muitos casos, “por eles”.

Como será que ficam as mentes de nossos adolescentes diante desses cenários? Serão eles capazes de enfrentar seus dilemas, conflitos, sentimentos de rejeição e outras agruras pessoais da fase que atravessam? Qual é o sentido deles viverem?

Para além do desânimo e do ceticismo: viver é preciso

E chegamos agora naquela altura do texto em que provoquei as mentes e corações de vocês a se abrirem à alta complexidade que envolve o suicídio juvenil. Deixando no rastro de cada subitem uma dúvida cruel: e agora? O que fazemos com essa possibilidade de estarmos em face de uma grande era do vazio e do hiperconsumo como denomina o pensador francês Gilles Lipovetski, nosso mundo atual?

Segue agora a proposta que não quer calar: vamos em busca de um sentido para as nossas vidas! Isso implica em nos desalojar de nossas conhecidas “zonas de conforto/desconforto conhecidas” e nos lança numa “nova zona de dúvidas/desconfortos desconhecidas”. Precisaremos identificar e “desconstruir” nossas maldições “invisíveis”, teremos de sair de nossas “certezas” e começarmos a caminhar pelas “incertezas” do viver.

Precisaremos assumir que nos perdemos de nós mesmos, de nossa humanidade, de nossa verdade frágil, de nossos sonhos e desejos de ser e contribuir para um mundo melhor, que só será possível se fizermos nossa parte dia a dia.

O convite também é feito para que resgatemos a “beleza do viver”, do “contemplar a natureza”, do simples, do brincar, do dar risada, do “ser” mais que do “ter”. Podemos tirar nossas máscaras de superpessoas, que contam que não podemos perder tempo em ajudar ninguém… voltamos, sem perceber, aos tempos da barbárie, nos quais imperava e impera as seguintes ordens: se fizer leva, se errar há castigos incompatíveis com  o erro, só queremos fazer o outro sofrer, de preferência, o dobro do mal-estar que provocou em nós.

Precisaremos nos livrar das pequenas e grandes violências que carregamos e praticamos cotidianamente, só assim a vida se abrirá em seu leque de possibilidades em que morte e vida bailam à espreita dos vivos sendo essa a questão crucial: com quem queremos bailar?

E para terminar…

Que escolhamos bailar com a vida, esse é meu desejo para todos nós! E gostaria de finalizar essa reflexão trazendo a experiência mais que bela e humana e recheada de sentido de vida, do violinista Paulo Torres, da Orquestra Sinfônica do Paraná.

Amante e profissional da música clássica, esse competente músico cruzou o conforto dos aplausos das salas de concertos e criou um caminho outro, maior, que encheu sua vida de sentido. Ele começou a dedicar semanalmente, um tempo para tocar violino para pacientes hospitalizados, segundo depoimento dele: ao tocar pela primeira vez para uma jovem numa UTI, atendeu ao pedido da mãe da jovem para que ele tocasse um hino, ele o fez e a menina abriu os olhos.

Ao final, a mãe muito emocionada lhe agarrou pelo braço e lhe contou que sua filha estava, até aquele momento, em coma. A partir dali, Paulo Torres sentiu que poderia ser um instrumento de vida para pessoas em alto sofrimento, e abraçou o “novo sentido” de sua vida, como um “chamado” a servir ao outro, feito pelo Deus em quem ele crê.

Que cada um de nós possa encontrar um “sentido” para a própria vida e que assim possa bailar com a vida e contribuir para que outros o façam.

Eis o link de um pequeno vídeo mostrando o Paulo Torres em seu novo sentido de vida: clique aqui