Aprendemos tudo: a cuidar e a destruir; entenda por que mudar é tão difícil

Por Fátima Fontes

Introdução

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“O imprinting é um termo que Konrad Lorentz propôs para dar conta da marca incontornável impostas pelas primeiras experiências do jovem animal, como um passarinho que, ao sair do ovo segue como se fosse sua mãe, o primeiro ser vivo ao seu alcance. Ora, há um imprinting cultural que marca os humanos, desde o nascimento, com o selo da cultura, primeiro familiar e depois escolar, prosseguindo na universidade ou na profissão.”
 (Edgar Morin, no livro O Método 4 – A ideias: habitat, vida, costumes, organização. Porto Alegre: Sulina, 2005, página 29).

O mote central de nossa reflexão, desta feita, será o forte laço de nossas aprendizagens sociais, tramadas em nós muito precocemente, na verdade desde que nascemos.

Esta é a maior razão pela qual mudar é tão difícil. Aprendemos a sentir, a pensar e a ser, com quem nos socializou e inconscientemente, nossos primeiros cuidadores exigiram a mais completa lealdade a tudo o que nos foi ensinado por eles.

A questão que se coloca neste texto, é que há muitos acertos, porém também há muitos equívocos, dissabores, enganos, abusos emocionais e violências em muitos desses aprendizados sociais, e que se continuarmos totalmente leais a eles, seguiremos sofrendo e fazendo sofrer aos que nos cercam.

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Lanço, então o desafio a que sejamos capazes de duvidar de algumas de nossas crenças negativas, tão bem impressas em nosso ser, e assim possamos dialogar com outras ideias, outros mundos, que nos tornem mais leves e mais funcionais em nossos vínculos.

Nossa aprendizagem dos cuidados

Comecemos falando do que deu certo no longo processo de imprinting social ao qual fomos submetidos desde bebês: aprendemos, com os que cuidaram de nós, uns melhores que outros, a nos cuidar para sobrevivermos.

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Aprendemos a identificar as nossas necessidades físicas, emocionais e sociais, e assim nos tornamos capazes de sobreviver porque delas cuidamos.

Nos chamaram por um nome, que passou a ser nossa primeira marcação de identidade, fomos alimentados, alguns acariciados, e apresentados ao mundo das trocas sociais.

Com pouca noção de perigo, corremos muitos riscos de morrermos antes dos três anos de idade, e só não o fizemos, porque tivemos adultos vigilantes por nossa sobrevivência.

Se tivermos tido a sorte de circular pelo mundo intergeracional familiar e pelo mundo de trocas sociais mais amplo, pudemos conviver com avós, tios, primos, vizinhos, amigos, que deram mais cor e vida às nossas descobertas pessoais.

A força de um carinho, de um elogio e de uma boa acolhida quando sofremos, estão impressas em nossas almas e podem nos ter ajudado a desenvolvermos a “resiliência”, ou seja, a capacidade de superar as nossas dificuldades e a crescermos nelas e através delas.

Se tivermos tido a felicidade de conviver com pessoas que exerceram a disciplina positiva, sem nunca terem lido nada sobre ela, apenas por intuição e foram capazes de nos educarem, como bons mestres, dando o próprio exemplo, e nos dando limites com força e carinho, seguramente estaremos indubitavelmente marcados para construirmos bons vínculos relacionais.

Nossa aprendizagem da destruição

Porém os ambientes socializadores funcionais são, infelizmente, bem menos encontrados, que os ambientes disfuncionais.

Nos ambientes funcionais, aprendemos a cuidar de nós e dos outros, mas nos ambientes disfuncionais, ou seja, naqueles onde a maior parte de nós fomos socializados, aprendemos em pouco tempo a duvidar de nós mesmos, a nos sentirmos inseguros e infelizes, venenos para nossa alma e para as relações sociais que desenvolveremos.

E como isso foi feito? Sobretudo com a aprendizagem do medo, da desqualificação e da ridicularização. Sim, muitos pais e cuidadores, riem, debocham dos erros infantis, humilham as crianças que não acertam, que não “ouvem” assim que o todo poderoso adulta manda. Algumas ainda são castigadas fisicamente, mas sem dúvida, a maior arma da destruição socializadora é a humilhação moral, emocional.

As crianças são expostas verbalmente, exaustivamente aos seus erros, não há elogios, afagos, e quando ocorrem, são interrompidos, por violências, que fazem nascer a angústia pelo “bom momento”, afinal, ele vai se acabar e será substituído pela crítica e violência, já que os socializadores são pessoas adoecidas, instáveis emocionalmente, e não seguram seus momentos de funcionalidade.

Saídos da socialização com esses imprinting de destruição, a maioria de nós, tenderá, quase que compulsivamente a “repetir esses padrões disfuncionais”, tenderemos a ser excessivamente severos com nossos erros e com os dos outros, nos converteremos em pessoas obesas de queixas e emagrecidas de bons afetos, quase anoréxicos da celebração.

A nova aprendizagem transformadora: dialogando com outros mundos

Como para todo o veneno há um antídoto, nem tudo está perdido em nosso sombrio mundo relacional aprendido.

Existem brechas: há outras pessoas que agem diferente de nossos disfuncionais socializadores, eles são afáveis, acolhem o erro, sim, o erro, afinal essas outras pessoas creem em outras coisas, como por exemplo: que o erro é o caminho do acerto, para isso precisaremos crer que podemos acertar e tentar e tentar e tentar outra vez.

Em outras relações encontraremos pessoas que elogiam os acertos, que louvam as boas coisas que fazemos e sentimos. Essas pessoas descobriram, a tempo, que uma vida de celebração e de gratidão, transforma o viver, e as relações.

Daí, começaremos o longo e árduo processo da mudança, pois vamos descobrindo com “outros mundos e modos de ser” são possíveis, que não precisaremos nos manter leais aos primeiros imprinting de nossos disfuncionais cuidadores, aos seus padrões de ação e pensamento, nem tão pouco atados às suas infelicidades e poderemos ser leais à nossa necessidade de sermos livres e felizes.

Mas, advirto que a jornada da transformação é longa, afinal o corpo e a alma têm memória e nelas estão impressos muitos padrões de destruição, aos quais tenderemos a retornar em muitos momentos de nosso viver.

Surge então outro precioso antídoto: o perdão. Sim, precisaremos nos perdoar sempre que voltarmos aos nossos próprios padrões de destruição e se formos capazes de acolher nossos desacertos, e lentamente elogiarmos nossa obstinação pela mudança… bingo! Voltamos a fortalecer a nossa caminhada cuidadora de nós mesmos e do outro.

E para terminar…

Que sejamos levados pelos bons ventos da mudança, da alegria e da leveza!

Que celebremos cada pequena vitória de nossa trajetória e da do outro! Só assim poderemos adentrar no incrível mundo da alegria, esse afeto que aumenta a potência de ação e que nos move a promover os bons encontros.

E não há nada melhor do que a arte para embalar nossos desejos, e compartilharei com vocês agora uma pintura de uma artista maravilhosamente sensível, que também é Psicóloga em São Paulo e se chama Maria do Céu Formiga.

Ceuzinha, como muitos a chamam, não podia ter outro nome, e pintou esse quadro inspirada numa menininha imigrante, em condição de absoluta carência, que divide, o pouco pão que recebe com as aves que a cercavam.

Não poderíamos terminar esse texto sem essa pintura e esse convite a enxergarmos nossas vidas e aquelas que nos cercam, com olhos de esperança e de transformação, como as crianças o fazem!