Por que “escolhemos guerrear” com o outro em tempos de escolhas políticas?

Por Fátima Fontes

Introdução

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“Na realidade, geralmente nos esquecemos de que as grandes manifestações de desequilíbrio social – guerras e revoluções – são produtos de grupos normais, dentro da média, sem desvios. Os membros desses grupos influenciam uns aos outros através de poderosas redes sociais que inconscientemente [e hoje ‘conscientemente’- comentário meu] criaram e através das quais seus sentimentos de amor e ódio e seus preconceitos diretos e simbólicos oscilam. A patologia e a terapia de grupos normais têm sido negligenciadas, mas é delas que a saúde social da humanidade depende.”

 (Jacob Levy Moreno, 1889 – 1947, no livro Quem sobreviverá? Fundamentos da Sociometria, Psicoterapia de Grupo e Sociodrama.
Goiânia: Dimensão, 1994, Volume II, página 235).

Estamos mais uma vez neste espaço reflexivo sobre nós e nossos vínculos. Desta feita, fui instigada a escrever sobre a atual onda de polarização política que se abate sobre nós e nossos vínculos, como uma forte tempestade, comprometendo relações e trazendo para aquele que deveria ser o “espaço da ágora, do debate”, um espaço da “guerra e do ódio” ao que pensa e vota diferente “de mim”.

Que lástima tudo isso, e como proposta alternativa e de “resgate” dessa tempestade, proponho o espaço das ideias e desejo que, de alguma forma, isso nos auxilie a sermos menos emocionais e mais racionais, num momento em que nosso cérebro frontal, aquele responsável pelas decisões racionais, seja o coordenador de nossas escolhas, ao invés de sermos primariamente levados pelo cérebro límbico, aquele mais primitivo e que é regido por nossas emoções e nos leva a sermos “impulsivos”, no momento de escolher o caminho a seguir.

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A raiz invisível de nossas paixões eleitorais: amores e ódios

Usei como texto de nossa epígrafe, as sábias palavras de um psiquiatra judeu, pai da Psicoterapia de Grupo e do Psicodrama, Jacob Levy Moreno, que viveu entre as grandes guerras a 1ª e a 2ª, e que com competência e muito estudo, concluiu que aquilo que promove as polarizações entre as pessoas, dissenções e guerras, não é algo que está fora delas, e sim algo que é eliciado, a partir dos ódios, amores e preconceitos que carregamos.

Na verdade, os estudos das paixões humanas, é bem anterior a Moreno, e poder-se-ia dizer que acompanha a história do mal-estar da civilização, como nos ajudou a refletir, outro gênio da análise do comportamento humano e suas relações, o também psiquiatra judeu Sigmund Freud.

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Juntando a esse coro de vozes, as vozes de filósofos, cientistas sociais, psicólogos sociais, teólogos, e cientistas afins, embasamos o argumento de que precisaremos identificar nossos campos pessoais, subjetivos de amores, ódios e preconceitos, como caminho para avançarmos na direção de uma escolha mais equilibrada.

É impressionante, o quanto as marcas de nossos processos de socialização primária e secundárias, nossos “imprintings”, dos quais tratei no artigo anterior, e que revelam nossa aprendizagem do amar e do odiar, ressurgem quando nos encontramos diante de cenários de perigos reais ou “imaginários”, evocados pela guerra do voto atual.

As incertezas sociopolíticas acabaram criando o fértil solo em que se desenvolvem sintomas, que poderíamos nomear de verdadeiras patologias sociais, dos quais ocuparia a primeira posição, a busca alucinada pelos “culpados” pela situação de sofrimento em que vivemos, estes tornam-se seres a quem desprezamos, odiamos e execramos, esse primeiro sintoma é ladeado por outro, de igual intensidade e valor, quase “delirante”, de que haveria um salvador, ou pessoas salvadoras, capazes de nos remover do atual cenário de corrupção  e enganos, aos quais juramos lealdade, amor e respeito.

A partir dessa vivência de “amor” e “ódio” projetadas para os vínculos, não tardará para que muitos preconceitos, arraigados em nós, também por nossas socializações, ganhem vida e cena e assim, o jogo da intolerância e do desrespeito se instalem definitivamente.

Adotando um tom “moderado” na busca do equilíbrio social, relacional e pessoal.

Feita, então essa “varredura” nas nossas histórias pessoais de amor e ódio, exorcizaremos os demônios que criamos e projetamos para nosso cenário sociopolítico.

Daí, nesse outro “estado psíquico”, poderemos alcançar a tal “paz de espírito”, que certamente nos guiará a reflexões mais abalizadas e ponderadas, neste “outro estado de alma”, o “pensar” coordenará as outras funções mentais como o “sentir”, e nos levará a criar espaços de ações com mais razoabilidade e funcionalidade, nos afastando dos extremismos e dos radicalismos.

Voltaremos a confiar em nós mesmos e naqueles com quem convivemos, uma vez que os núcleos paranoides de “perseguição” e de “conspiração” tenderão a cair por terra e aquele que pensa diferente de nós, deixará de ser oponente, e voltará a ser somente um “divergente”.

Em paz, pessoal e relacional, seremos capazes de unir nossas forças, de nos envolvermos mais com o “bem comum”, esse do qual pouco ou nada sabemos, uma vez que nossa imatura história republicana e democrática, ainda não nos ensinou a vencermos a nossa histórica letargia participativa na causa do viver comunal.

Para além do resultado eleitoral, precisamos nos envolver mais com a causa social, precisamos zelar pelos nossos recém-abertos espaços de transparência e lutas por participação civil nos espaços políticos.

Precisamos acompanhar a trajetória dos que assumirem os vários poderes, pois essa será a única forma de co-construirmos uma realidade social mais justa e que saiba cuidar de seus cidadãos. Nossa voz não se expressa somente no voto, mas sobretudo nos nossos vários espaços de pertença social.

Diferente disso, será “lavarmos nossas mãos”, e seguirmos ressentidos, cheios de ódios e mágoas, desejando que “dê tudo errado”, afinal não ganhou quem nós queríamos.

Somos aquilo que escolhermos viver, pensar, sentir e fazer. E isso é bem mais do que um voto eleitoral, representa uma ética do viver, tijolo primordial numa construção ética social mais ampla.

Tudo começa em nós, o que estamos alimentando nesses tempos atuais? Uma cultura de paz ou uma cultura de guerra?

E para terminar…

Quero chamar, para nos ajudar a encerrar esse artigo, o poeta lusitano Fernando Pessoa, que escreveu sobre nosso sonho de sociedade justa… que ele nos inspire nesses tempos de escolhas, afinal precisamos fazer boas e melhores escolhas e por elas nos responsabilizarmos!

          “30-08-1933   
            Não sei se é sonho, se realidade,
            Se uma mistura de sonho e vida,
            Aquela ilha de suavidade
            Que na ilha extrema do Sul se olvida.
            É a que ansiamos. Ali, ali
            A vida é jovem e o amor sorri.

           Talvez palmares inexistentes,
           Áleas longínquas sem poder ser,
           Sombra ou sossego deem aos crentes
           De que essa terra se pode ter.
           Felizes, nós? Ah, talvez,
           Naquela terra, daquela vez.          

            Mas já sonhada se desvirtua,
            Só de pensá-la cansou pensar,
            Sob os palmares, à luz da lua,
            Sente-se frio de haver luar.
            Ah, nessa terra também, também
            O mal não cessa, não dura o bem.
 
            Não é com ilhas do fim do mundo,
            Nem com palmares de sonho ou não,
            Que cura a alma seu mal profundo,
            Que o bem nos entra no coração.
            É em nós que é tudo. É ali, ali,
            Que a vida é jovem e o amor sorri.”
            (PESSOA,1960, p.167)