A passagem das horas: brancos e charmosos

Por Maria do Céu Formiga

Minha prima tem uma cachorra bassê branca, de cabelos longos caídos graciosamente sobre as orelhas, educada, alegre, cheia de vida. Quando nos encontramos, ela sempre me cumprimenta, faz um pouco de sala e depois se senta na poltrona em frente para participar da conversa.

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Toda vez que a vejo penso que gostaria de estar como ela na minha velhice, principalmente no que se refere a seus cabelos. Me imagino batendo perna por aí, ostentando a beleza natural e deixando claro o emblema da passagem do tempo, da maturidade que, espera-se, eu tenha adquirido. E é possível que tenha mesmo adquirido com esse esforço quase diário de forçar a garganta seca e não se engasgar, mesmo distante da fonte.

Sempre fui vaidosa, sempre gostei de combinar tons e conforto.  Sei que vou continuar sendo, mas a ideia de cada vez mais ir extirpando do convívio o que tem cheiro de escravidão, como sair correndo para retocar a tintura a cada meio centímetro de raiz que denuncia o equívoco, é uma delícia.

Já pensou no cabelo só com um corte diferenciado, irregular, e um bom xampu com proteção solar? (Quero um cabelo branquinho, e não amarelado, tampouco lilás. Cabelo lilás é a resposta ao desamparo de um destino sem protesto). Que liberdade! A autonomia de uma calopsita andando pela sala, faceira, quase insolente.
Dona dos meus cabelos grisalhos, quero mais, muito mais. Quero, na mesa da varanda, um buquezinho de lavandas colhidas do meu jardim, ao lado da lapiseira de estimação e do inseparável bloco de anotações perfumado e sem pauta, porque sei que vou envelhecer poetizando.

A cumplicidade com o sonho ajuda a reinventar a vida (diariamente).

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Sei que não vou precisar de um gramofone. O silêncio me canta e me encanta.

Curto o fluxo da impermanência.

Minha varanda, neste último andar, tão pertinho das estrelas, foi escolhida com requinte de critérios. Varanda ampla, decorada para acolher e convidar a ficar. No inverno a lareira e a quentura solidária; na primavera, as flores se balançando como o sutil movimento das águas de um lago, pelo efeito do sopro do vento.

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Nela hoje, contemplo o olhar de Deus e colho a certeza de que o necessário para viver está bem ao alcance das mãos, de temperatura branda. Por isso posso descansar.

Meu lar é meu coração, lugar onde eu mais vivo.

Para ser o melhor lugar do mundo, não preciso fazer um estudo de geobiologia, a medicina do habitat, estudar o impacto do espaço sobre a qualidade de vida. Por aqui, sentido e local caminham de mãos dadas.

Meu coração constelou um projeto inteligente: suas janelas são de vidro termogênico, que permitem  a luz e não o calor e seus temores.

Ah! Meus grisalhos no meio do conforto. Nesta altura não vou estar aflita batendo suco de manga com cenoura, água de coco e gergelim, mistura rica em betacaroteno, produto antioxidante que protege contra o envelhecimento, porque já terei somado em anos (mimosamente, é claro), nem ficarei medindo a produção de melanina, pigmento que promove aquele invejável bronzeado, porque devo já ter me saciado dos excessos do sol a pino. Com certeza, um chá gracioso e perfumado ou uma boa taça de vinho estarão de bom tamanho para a gratidão e a paciência que já terei como aliadas na mitografia particular.

Finais de tarde despretensiosos com meus grisalhos já comecei a plantar. Em silêncio.

Passei da fase da lagarta, ainda um projeto colado exclusivamente ao presente. Passei da fase crisálida, meio imóvel, gestando nova vida, mas ainda sem mostrar sua carinha ao mundo (em estado de resguardo).

Como borboleta, fruto de um tempo de espera e investimento, me comovo com a vida tão efêmera, tão sem garantia e, por isso mesmo, tão encantadora.

Com asas empenhadamente construídas, é possível dançar sobre tantos outros cenários, novos pomares.

E as feridas e as mágoas do caminho? Calêndula. Basta. É um cicratizante.

Cabelos grisalhos combinam com a leveza da borboleta.

Com certeza não estarei praticando simpatias orientais para aprender a bater asas com compaixão. Coisas do signo. Nada além.

O que me move a voos mais dignos é a conciliação que constato entre o que desejei e o que aconteceu… e a alegria de ver que, se permito a mudança dos prazeres, deixo uma brecha para o futuro (com simplicidade).

Um futuro que vai sempre precisar de um bloco de anotações perfumado, porque sei que vou envelhecer poetizando…livre!