Coronavírus: o pseudodilema entre a vida e a economia

Diante da pandemia do novo coronavírus, muitos perguntam: Como será o mundo após a pandemia? Quando tudo isso passar, voltaremos à “vida normal”? Seguiremos os mesmos, vivendo e pensando da mesma maneira? Ou a experiência de vislumbrar a fragilidade da vida, a possibilidade do fim, desloca nosso olhar, nos forçando a observar elementos habitualmente negligenciados?

Não temos uma resposta para a questão sobre como será o mundo após a pandemia, não temos uma resposta sobre quando e como isso vai acabar. Contudo, ao sermos forçados a modificar nossos hábitos, nossa rotina, muito se revela.

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Pseudodilema

O primeiro ponto que ganha destaque é o pseudodilema que nos coloca diante da escolha entre vida e economia . Pseudodilema porque fica claro que a escolha tem sido, há muito tempo, a economia.

A que me refiro quando afirmo isto? Observe alguns dos fatos evidenciados com a epidemia: para conter a propagação do vírus, precisamos cuidar da higiene, basicamente, “lavar as mãos”. Como podem lavar as mãos aqueles que não têm água em suas casas? O fato da água não chegar a muitas casas não gera outros problemas de saúde, muito antes e além do coronavírus? Mas por que a água não chega a muitas casas em nosso país? E aqueles que não têm casa? Que vivem nas ruas? Em que condições vivem? O que lhes é oferecido em termos de condições para cuidado com higiene, saúde e alimentação? Por que famílias vivem nas ruas se há tanto espaço em nosso país e tantas moradias abandonadas em nossas cidades? O que é privilegiado nestes casos: vida ou economia?

Outra indicação para conter o vírus é o isolamento social. De um lado, o argumento contra o isolamento aponta para a necessidade do cidadão sustentar sua família. Mas esta necessidade, existente em nossa sociedade, não é atendida, em muitos casos, bem antes do coronavírus. O desemprego, a precarização do trabalho, a má remuneração, direitos trabalhistas sendo extinguidos… De outro lado, quem, de fato, pode se isolar, e em quais condições? Estes e outros pontos mostram que escolhemos a economia em detrimento da vida, há muito tempo.

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De que economia estamos falando?

Mas de que economia fala quem afirma que “algumas mortes são aceitáveis para salvar a economia”? A que economia se refere quem afirma que o isolamento social, necessário para conter o vírus e salvar vidas, vai “acabar com a economia”?

Guattari, no livro “As três ecologias” (Papirus, 1990), lembra-nos que economia e ecologia têm origem no mesmo termo grego: oikos, que significa, casa, morada. A economia, etimologicamente, diz respeito às normas para cuidar da casa, da morada, da família. Para Guattari, cuidar da casa é cuidar de três dimensões de nossa morada: o corpo, a sociedade e o planeta. Na origem grega, cuidar de si significava cuidar da polis, da cidade, e também da natureza que coabitamos. Neste sentido, seria um pseudodilema escolher entre vida e economia, pois não poderia existir economia sem vida, nem economia que não estivesse a serviço da vida.

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Porém, hoje, o que a pandemia nos revela é que constituímos, no decorrer de nossa história, uma economia de mercado, muito distante da concepção relembrada por Guattari. Servimos ao mercado, um ser abstrato que recebe mais cuidados que os reais seres humanos e, em virtude do qual, muitos seres humanos “perdem” suas vidas – literal ou metaforicamente.

Diante da pandemia, não nos resta escolha senão priorizar a vida. Não haverá economia se não houver vidas. Isto nos provoca a colocar em questionamento a escolha que temos feito como sociedade e nos possibilita a experiência de uma escolha diferente. Como seriam nossas vidas se, em vez de privilegiarmos a “economia de mercado” privilegiássemos a vida? O que seria modificado em nosso cotidiano? Será que, após experimentarmos privilegiar a vida, retornaríamos a um modo de viver que sacrifica vidas em benefício do lucro?

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[1]
Tratei desta questão no texto “O pseudodilema: vida ou economia?”, que será publicado no número 162 da Revista Filosofia, Ciência & Vida.