Lembranças e o desejo de apagá-las : sobrevive-se ao trauma?

por Regina Wielenska

Na evolução da espécie humana, teve vantagem de sobrevivência quem aprendeu rapidamente coisas importantes.

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Onde estão as amoras, qual vegetal é tóxico, quando semear, porque é inútil nadar contra a corrente. Com o passar dos séculos, essa lista se modificou enormemente, ainda influenciada pelas demandas da biologia, e acrescida da história individual e impulsionada pela força das diferentes culturas.

Se eu trabalho numa corporação conservadora e hierárquica, preciso saber como esperam que eu me vista, as formas de me comunicar com as chefias, os padrões de qualidade para meu desempenho, um mundaréu de coisas diferentes daquelas que outro sujeito terá que aprender quando for selecionado pra trabalhar numa empresa líder na criação de redes sociais. Se o meu contexto de trabalho for a empresa conservadora, preciso aprender comportamentos e seguir valores compatíveis com ela. Mesmo se eu decidir contribuir com inovações e quebrar paradigmas, preciso pensar numa estratégia palatável aos gestores, ou correrei o risco de ser um incompreendido em vias de demissão.

Para o contexto informal e ágil da empresa que criou uma rede social gigante, as relações a aprender, os comportamentos que terei de emitir, os valores subjacentes, tudo será de outro tipo. Eu preciso aprender, o tempo todo, a responder em consonância com relações que de funcionalidade entre pessoas, eventos e coisas. Tudo se tornou complexo, relativo, contextualizável, mutante, interligado.

Resumindo: evoluímos o tempo todo aprendendo coisas sobre os ambientes onde vivemos e reagindo a elas, tendo ou não consciência das forças que nos influenciam. Nosso comportamento de reagir diferencialmente ao que aprendemos no passado imediato e remoto é ferramenta das mais úteis. A memória está conectada aos afetos, às necessidades, aos sinais de que nos aproximamos ou nos afastamos daquilo que nos importa a cada instante.

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Agora me digam, se aprender com a experiência é tão importante, como alguém pode desperdiçar tanta energia para se esquecer de um evento doloroso? Tem gente que se embriaga para esquecer as dores de amor. Há os que se afastam da vida para não contatar as coisas que lhe fazem lembrar do filho assassinado, do abuso sexual, do acidente de carro, de tantas coisas ruins.

Meu ponto é o seguinte: A GENTE NÂO ESQUECE E TENTAR FUGIR SÓ PIORA AS COISAS. Simples assim. Afinal, nosso cérebro vive fazendo conexões, tudo potencialmente se soma. Claro que demências, fadiga, estressores, uso de substâncias, esses fatores podem afetar nossa capacidade de uso das funções relacionadas à atividade denominada memória. Mas, falando em termos gerais, não tem como se esquecer de algo difícil, doído e importante num sentido ruim.

O jeito é assimilar as lembranças ao comportamento de retomar a vida e construir uma história nova, que se soma à anterior. Quando a gente se reconecta ao presente, depois que coisas ruins deixaram marcas indeléveis, encontramos um novo sentido de vida. As coisas, bem devagar, entram nos eixos, e para isso precisamos ter em mente por quais valores queremos nos orientar. Os tais valores são como a estrela de Belém, um conceito rico em afetividade, um ideal que nos toca o coração, que nos guia em busca de algo muito importante, significativo, que traga sentido para nós. Não falo de carro novo, celular inteligente, ou imóvel maior.

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Na verdade, valores representam nossa visão de mundo acerca da relação com as pessoas, inclusive a mais íntima das relações, aquela entre cada indivíduo com seus muitos e diferentes instantes, com sua história passada, tecendo um continuum existencial, inserido necessariamente num contexto mais amplo, e por vezes abstrato, de relações verbais e não verbais.

Viver não é fácil, viver pode doer. Mas vale a pena até isso, se a gente descobrir o que queremos defender, lutar por, apreender e aprender. Somamos memórias, e com elas (re)construímos histórias. Este é o sabor que o mundo tem a nos oferecer.