Grande amizade só surge de um lento processo de conquista mútua

por Fátima Fontes

Introdução:
“Em todo o tempo ama o amigo, e na angústia se faz um irmão”.
(Rei Salomão em Bíblia Sagrada livro de provérbios 17:17)

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Dou sequência ao nosso encontro nesta coluna sobre nossos vínculos interpessoais. Focarei nesta reflexão o precioso assunto da amizade.

E para isso gostaria de promover um re-pensar sobre o que poderíamos realmente chamar de vínculo de amizade, em tempos de eu quero ter um milhão de amigos, como cantava Roberto Carlos outrora e como prometem nossas redes sociais.

Não, não é dessa marca de amigos que estaremos tratando aqui, e sim de algo próximo ao significado da palavra indígena TXAI como Milton Nascimento nos ensinou: "meu amigo, meu irmão, sua metade que vive em mim e minha metade que vive em você" – letra da canção no final desta coluna.

Esclarecimentos feitos então, rumemos para essa trilha de ser e ter amigos Txais.

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Como nos tornamos amigos de alguém?

Vamos localizar a nossa socialização secundária como o ponto de partida da aprendizagem social do ser e ter amigos, ou seja, aquela socialização que é feita para fora da família, quando já falamos, andamos e começamos a nos relacionar com os outros que não são: mamãe, papai, vovó, titia…

Mentira social familiar e equívoco relacional

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Aí já podemos desfazer uma primeira grande mentira social familiar: não é verdade que nossos melhores amigos têm que ser nossos familiares, primeiro porque, amigo, a gente escolhe e a família não, é uma eleição: ela é dada socialmente, ninguém escolhe a família que terá e sim é escolhido, ok?

Em segundo lugar, nenhuma amizade pode ser imposta. Ela parte de um lento processo de conquista mútua, logo, a imposição: você tem que ser amigo de seu irmão é um grande equívoco relacional. Na verdade poderemos até ser muito amigo de nossos irmãos e parentes, mas isso jamais poderá ser fruto de uma imposição familiar.

Pais amigos dos filhos os deixam órfãos

Pior ainda é acompanharmos o suplício familiar de mães e pais que equivocadamente querem ser amigos de seus filhos, e assim o desejando e agindo, os deixam órfãos de pais vivos, pois os limites e as regras de convivências são chatas e somente chatos podem ensiná-las: nenhum amiguinho nos ensinará a escovar os dentes, a tomar banho, a nos assearmos, a tiramos a toalha molhada do banheiro, a acordarmos cedo para irmos à escola e a dormirmos cedo para poder não dormir na aula no outro dia, etc…

As regras da boa convivência então, nem pensar, os tais pais amigos se esquivam de as ensinar, visto que se assim o fizerem seus amados amigos/filhos não os considerarão mais amiguinhos, nessa trajetória de desastres o que acontece?

As necessárias leis do convívio solidário não são passadas e sendo assim: o muito obrigado, por favor, desculpe, bom-dia, etc… nunca foram lições.

Acompanhamos a tristes cenários decorrentes também disto, tanto pela mídia em jornais e telejornais, claro que filmados e transmitidos em redes sociais mundiais que nos expõem a imagens de banalização da violência: adolescentes de ambos os sexos, agredindo a pontapés e jogando a cabeça de seu semelhante na parede externa da escola, da balada, etc… Mas como agir de outra maneira, se não houve quem lhes ensinasse o respeito, a consideração e a compaixão pelo semelhante?

Então nós aprendemos, mediados pelas virtudes sociais, caso nos sejam ensinadas, a desenvolver o laço da amizade, onde o mais importante é a identificação, desde muito cedo, de que alguém nos entende, nos aceita e deseja sempre o nosso melhor.

Relações líquidas: grande solidão e medo

Temos vivido hoje, imersos numa realidade relacional de relações líquidas (Zygmunt Bauman – leia texto relacionado) tempos de grande solidão e suas decorrências: parece que perdemos a capacidade de enfrentar os obstáculos que nos surgem tanto em nosso mundo biológico, quanto emocional, social e espiritual, pois nos sentimos condenados a mostrar sempre que ‘está tudo bem, veja a foto que acabei de te postar…’. Nossas dores deverão ficar recolhidas, escondidas e não demorará muito se tornarão variados sintomas. Afinal, quando a boca cala o corpo fala e quando a boca fala o corpo sara (Adalberto Barreto, psiquiatra Social).

Propomos então uma trajetória de cuidados e dedicação aos nossos verdadeiros amigos Txais, que talvez não encham uma mão e para eles e com eles poderemos nos sarar das doenças da solidão, das dores todas: sejam físicas, emocionais, sociais ou espirituais e assim entoaremos juntos, a canção que tão generosamente nos foi outorgada por Milton Nascimento:

Txai
Milton Nascimento

Txai é fortaleza que não cai.
Mesmo se um dia a gente sai,
fica no peito essa dor.

Txai, este pedaço em meu ser.
Tua presença vai bater
e vamos ser um só.

Lá onde tudo é e apareceu
como a beleza que o sol te deu
é tarde longe também sou eu.

Txai, a tua seta viajou,
chamou o tempo e parou
dentro de todos nós.

Já vai, ia levando o meu amor
para molhar teus olhos
e fazer tudo bem,
te desejar como o vento,
porque a tarde cai.

Txai é quando sou o teu igual,
dou o que tenho de melhor
e guardo teu sinal.

Lá onde a saudade vem contar
tantas lembranças numa só,
todas metades em, todos inteiros,
todos se chamam txai.

Txai, tudo se chama nuvem,
tudo se chama rio,
tudo que vai nascer.

Txai, onde achei coragem
de ser metade todo teu,
outra metade eu
porque a tarde cai
e dona lua vai chegar
com sua noite longa,
ser para sempre txai.”