Tem pessoas que adoecem como forma de resolver seus problemas

por Monica Aiub

Em filosofia clínica, as formas, os modos que utilizamos para lidar com nossas situações são denominados submodos.

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Modos, maneiras, subordinados à existência, a nosso jeito de ser-no-mundo, ao que construímos no decorrer de nossas vidas e histórias.

Entre os submodos que uma pessoa utiliza, alguns são eficazes para tratar os assuntos em questão, outros são contraproducentes, pois não ajudam ou geram maiores problemas derivados de sua utilização.

Há ainda aqueles que a pessoa utiliza por hábito, porque só aprendeu a responder às questões daquela maneira, o que, em alguns casos, acabam por se tornar uma armadilha, um padrão ao qual a pessoa fica presa.

Depois de alguns anos atendendo pessoas em consultório e observando os modos como resolvem seus problemas, algumas formas me chamaram a atenção.

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Entre elas, pessoas que adoecem como forma de resolver seus problemas. Poderíamos, num primeiro momento, afirmar que com isso a pessoa está gerando mais problemas, está se prejudicando, mas isso de modo descontextualizado. Em certos casos, adoecer pode ser algo menos prejudicial que outras formas de solução.

Obviamente, não se trata de defender a tese de que toda doença é uma forma de resolver problemas, muito menos de sugerir que assim se faça, mas compreender como esses processos ocorrem para cada pessoa, e em quais casos se trata de uma forma legítima e eficaz.

Metáfora da doença

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Susan Sontag, em seu texto A doença como metáfora, estuda a metáfora da doença como um castigo, como culpa, como desejo do doente e propõe que precisamos abandonar essa metáfora para dar um tratamento adequado à doença e evitar toda uma carga de culpa vinculada a ela, que somente aumenta o sofrimento do doente.

As noções punitivas da doença têm uma longa história e são particularmente atuantes em relação ao câncer. Existe uma “luta” ou “cruzada” contra o câncer. O câncer é a doença “assassina”.

As pessoas que têm câncer são “vítimas do câncer”. Aparentemente, a doença é o réu, mas ao doente também cabe a culpa. Teorias psicológicas da doença amplamente difundidas atribuem ao infeliz canceroso tanto a responsabilidade de ter caído enfermo quanto a de curar-se.

E as convenções segundo as quais o câncer é tratado, não como uma simples doença, mas como um inimigo satânico, fazem dele não só uma enfermidade letal mas também uma doença vergonhosa (SONTAG, 2002: 75).

Da Odisséia aos contemporâneos, Sontag faz uma análise dos modos como a doença foi tratada ao longo da história, tendo se tornado metáfora para possessão demoníaca, castigo dos deuses ou da própria pessoa, mal, culpa, erro, sentimentos reprimidos, entre tantos outros significados. Abordando duas doenças – tuberculose e câncer – ela demonstra como esses significados metafóricos impingem uma carga de culpa e vergonha ao enfermo, sendo, em muitos casos, prejudicial ao tratamento.

O erro de Descartes

Antonio Damásio, em O erro de Descartes, defende a hipótese dos marcadores somáticos como formas de aumentar a precisão e eficiência nos processos decisórios. Segundo essa hipótese, as sensações corporais (estados somáticos) contribuem para que escolhamos ou rejeitemos as alternativas que nos são apresentadas. Eles funcionam como uma espécie de “alarme” do corpo, com base em processos biológicos e culturais. Contudo, apesar desses mecanismos serem biológicos ou aprendidos culturalmente, não há uma determinação necessária aos comportamentos humanos. Ou seja, nossas decisões não são determinadas exclusivamente por eles.

Algumas atitudes humanas sublimes advêm da rejeição do que a biologia ou a cultura impelem os indivíduos a fazer. Essas atitudes são a afirmação de um novo nível de existência em que é possível inventar novos artefatos e criar modos mais justos de viver. Em determinadas circunstâncias, porém, a libertação dos condicionantes biológicos e culturais pode ser também um sinal de demência e alimentar ideias e atos do louco (DAMÁSIO, 1996: 209).

Para Damásio, são os aspectos contextuais que definem as formas de atuação do organismo, tornando esses impulsos somáticos benéficos ou maléficos. Tudo depende do tipo e quantidade de marcação somática aplicada aos problemas em questão.

Se você está agora se interrogando sobre o motivo por que os impulsos biológicos e a emoção podem ser tanto benéficos como nocivos, deixe-me dizer-lhe que não seria o único caso em biologia em que um determinado fator ou mecanismo pode ser negativo ou positivo, de acordo com as circunstâncias (DAMÁSIO, 1996: 227).

Legitimação

Partindo da hipótese dos marcadores somáticos de Damásio, poderíamos recorrer à ideia do adoecer como uma forma legítima de defesa do organismo.

Situações de estresse crônico, por exemplo, poderiam gerar, em alguns casos, doenças, exigindo o afastamento da pessoa de suas atividades cotidianas. Esse afastamento poderia propiciar uma revisão de seus processos e formas de lidar com as questões do dia-a-dia, levando a modificações na rotina e subsequente diminuição do estresse.

Uma situação incômoda, capaz de levar a pessoa a comportamentos excessivamente agressivos, ou a uma desestruturação ou depressão importante, poderia ser trabalhada se identificada inicialmente. A manifestação de um marcador somático, alertando a pessoa sobre a necessidade de alterar seus padrões de ação ou contexto de vida, poderia evitar que tal situação provocasse efeitos desastrosos.

Oliver Sacks, em seu livro Um antropólogo em Marte, relata histórias de pessoas sobrevivendo em “condições alteradas”, casos neurológicos, a partir de um processo de reconstrução e adaptação do cérebro, do mundo e dos modos de vida de cada paciente. Em seu prefácio afirma:

Para o médico, o estudo da doença exige o estudo da identidade, os mundos interiores que os pacientes criam sob o impulso da doença. Mas a realidade dos pacientes, as formas como eles e seus cérebros constroem seus próprios mundos, não pode ser totalmente compreendida pela observação do comportamento, do exterior. Além da abordagem objetiva do cientista, do naturalista, também devemos empregar um ponto de vista inter-subjetivo, mergulhando, como escreve Foucault, “No interior da consciência mórbida, [tentando] ver o mundo patológico com os olhos do paciente” (SACKS, 2006:15-16).

Nem sempre a doença é um mal

Pensando com Oliver Sacks, nem sempre a doença é um mal. Nem sempre ela rouba nossa identidade ou passa a nos identificar. Ele descreve, nesse e em outros livros, casos em que não há a opção de cura – no sentido de levar a pessoa ao padrão considerado saudável, ou de restituir um “equilíbrio” original à pessoa. Seu trabalho é desenvolvido a partir de doenças neurológicas degenerativas, ou lesões cerebrais que exigem um “aprender a conviver com a doença”. Do ponto de vista biológico, casos sem solução. Do ponto de vista subjetivo, a possibilidade de construir novos modos de ser, de “transmutar” a si mesmo e a seus contextos.

Em filosofia clínica não trabalhamos com patologias, doenças. Quando uma pessoa nos procura com indícios, sinais e sintomas que indiquem a possibilidade de uma disfunção orgânica, encaminhamos a um médico, para o devido tratamento, e trabalhamos paralelamente, interdisciplinarmente, com esse profissional, a fim de compreender o significado da doença para aquela pessoa, o peso em sua vida, o papel e, muitas vezes, ajudá-la a encontrar formas de “curar-se” ou “aprender a lidar com a doença” ou “descobrir-se saudável” diante da totalidade de sua existência.

Longe da metáfora da doença como mal, castigo, culpa, ou algo criado pela própria pessoa, ou qualquer outra metáfora que generalize o significado de uma doença, o filósofo clínico observa o significado naquele contexto, para aquela pessoa, relacionando a todos os dados coletados na sua história de vida. Observa também o papel, o peso, o que esse estado – passageiro ou não – provoca para a pessoa e seu entorno.

E quando a doença é utilizada como um submodo, uma maneira de lidar com a questão?

Em certos casos, é possível observar um movimento existencial em que a pessoa adoece para resolver o problema, ou para que, diante de uma circunstância, não reaja de outras maneiras. É possível encontrar desde exemplos simples – como pessoas que perdem a voz por não poder dizer algo a alguém. Estando impedido de dizer ao chefe que sua posição está errada e que é preciso tratar a questão de outra maneira, desenvolve uma infecção ou irritação que lhe provoca rouquidão, até exemplos mais complexos, de pessoas que ficam impossibilitadas de andar ou de enxergar diante de situações problemáticas.

Como isso funciona? É difícil saber. Não há elementos que indiquem relações causais diretas e, portanto, não há explicações para tal. A medicina psicossomática identifica e trata dos sintomas, mas desconhece os mecanismos que provocam esses eventos (cf. Schiller, 2003).

Em filosofia clínica, essas explicações não são o foco, interessa observar o funcionamento de tais eventos. Trata-se um padrão no histórico da pessoa o fato de adoecer diante de situações problemáticas? O que isso traz para a pessoa em termos de resultados, ou seja, como altera sua estrutura ou seu contexto, como a movimenta existencialmente?

Há casos em que o adoecer provoca todo um movimento existencial que leva a pessoa a resolver o que lhe incomoda, a modificar sua forma de vida, seu entorno ou seu modo de lidar com os problemas. Nesses casos, a doença funciona como um submodo eficaz. É comum, quando isso é padrão, que a pessoa manifeste esse dado somático sempre de uma mesma maneira: crises de asma, de gastrite, de hipertensão, etc. Mas também pode ocorrer da pessoa manifestar esse dado em diferentes doenças: num caso é enxaqueca, no outro é infecção urinária, num terceiro uma tendinite… Em casos em que a doença aparece como um submodo eficaz, é possível dizer que ela foi necessária para a solução de um determinado problema.

Custo-benefício

Contudo, há casos em que, apesar da doença ser um submodo eficaz, ocorre de ela trazer mais malefícios que benefícios, ou seja, o quadro se complica e a doença passa a ser um problema incontornável. Por isso é necessário muito cuidado com o uso desse submodo.

Em direção às sensações é, na maior parte dos casos, o submodo que se faz presente nesses processos. Se observarmos bem os dados coletados no histórico da pessoa, pode ocorrer de encontrarmos outras formas de exercício deste submodo. Ir em direção às sensações consiste em dirigir-se ao somático, ao sensorial. É possível fazê-lo de diferentes modos, e cabe ao filósofo clínico observar como a pessoa faz isso, que outras formas seriam possíveis àquela estrutura, para que a sensação funcionasse como um submodo e pudesse substituir o adoecer.

Parece muito fácil, às vezes realmente é. Outras vezes, não é tão simples assim, e a pessoa necessita substituir o submodo por outros. Então é o caso de procurar outras formas para se lidar com o problema apresentado.

Sanidade X loucura

Há também casos em que o uso desse submodo é a forma de manter a sanidade. Algumas pessoas adoecem para não enlouquecer; outras para não agredir alguém; outras, ainda, para que consigam se manter vivas ou para evitar grandes rompimentos. Assim sendo, é arriscado, sem conhecer os contextos, os aspectos subjetivos que envolvem uma “doença”, buscar a cura, substituindo essa forma de lidar com os problemas por outra. É preciso, antes de qualquer coisa, um estudo mais complexo, mais amplo, que ofereça um conhecimento do mundo inter-subjetivo. O foco de um tratamento não deve ser a doença e sim a pessoa e seu mundo.

Você já adoeceu como forma de resolver seus problemas? O que aconteceu? Você necessita adoecer ou há outros caminhos para lidar com suas questões? Se não há, você poderia criar esses novos caminhos? E se você está doente e não vê sua doença como uma forma de resolver problemas, isso nada significa, pois nem toda doença funciona como um submodo.

Referências Bibliográficas:
DAMÁSIO, A. O erro de Descartes. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
SACKS, O. Um antropólogo em Marte. São Paulo: Cia das Letras, 2006.
SCHILLER, P. As Psicossomáticas in VOLICH, R (org) Psicossoma III. São Paulo: Casa do Psicólogo. 2003
SONTAG, S. A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Graal, 1998.