Revisão de vida: a existência como uma obra de arte

por Monica Aiub

Final de um ano, início de outro… muitos fazem revisão de vida, estabelecem metas, enunciam promessas. Alguns o fazem todos os anos.

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Todos os anos as mesmas promessas não cumpridas, as mesmas metas não atingidas, o mesmo que se repete como um eterno trabalho de Sísifo ou como a eterna punição de Prometeu acorrentado. O que os prende? O que não lhes permite prosseguir? Para alguns o não cumprimento das promessas, a não aquisição das metas estabelecidas provoca sensações horríveis, sentimentos de incompetência, desvalorização de si, entre muitas outras consequências. Para outros, apenas a constatação da impossibilidade de cumprir o proposto, mas nenhuma alteração na proposta, e menos ainda a cogitação da possibilidade de abandoná-la. Esses continuam enunciando suas promessas e metas como um canto repetitivo, que não tem força de ação, apenas palavras, palavras, palavras… É interessante observar que, em alguns casos, somente o enunciar, o listar as metas equivale a tê-las cumprido. Definir o que fazer, não fazer, e sentir-se como se tivesse feito. Missão cumprida no universo das abstrações.

Mas há também aqueles que cumprem todos os itens de suas promessas e metas, satisfazem-se com seu desempenho e propõem novas metas, sempre na medida de suas possibilidades. Assim como há aqueles que cumprem todos os itens, consideram pouco, irrisório, e sentem-se mal por não terem ido além disso. Esses são apenas alguns exemplos desses processos, que não são os mesmos sempre, nem para uma mesma pessoa. Muitas podem ser as variáveis, ainda que um breve olhar à volta nos leve a crer que “todo mundo faz isso”, ou uma escuta rápida nos leve a considerar que “todo mundo diz isso”. Quem é “todo mundo que faz isso” ou “todo mundo que diz isso”? Eis uma questão interessante para se investigar.

Aquilo que “todo mundo faz”, “que todo mundo diz”, “que todo mundo pensa” muitas vezes serve como fundamento para que se considere uma ação, uma afirmação ou um pensamento verdadeiros; mais do que isso, naturais. O processo de naturalização dos modos de vida nos provoca a avaliar, em nós mesmos e nos outros, tudo aquilo que fuja aos padrões vigentes como anormal, loucura, burrice, incompetência, incapacidade, entre outros adjetivos. Assim, também parece ser natural que gostemos do que “todo mundo gosta”, que busquemos ser “o que todo mundo é”. E assim nos tornamos os mesmos de um mesmo padrão, ainda que a originalidade seja “ser o que todo mundo é”, em seus múltiplos significados.

É interessante observar a angústia de não ser aquilo que não se quer ser. Mas que motivos há para se angustiar por não ser o que não se quer ser? Se “todo mundo é”, ainda que se tenha escolhido não ser, há implicações por não ser: exclusão, cobranças, comparações… Há como comparar modos de vida? Nós comparamos. Há como comparar desejos? Nós comparamos. E para isso utilizamos padrões estatísticos dos modos de vida normais ou não, dos desejos normais ou não.

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Mais interessante ainda é observar as contradições que se manifestam nos desejos, nas formas de ser, nas decisões, nas formas de expressão… Como é possível querer e não querer? Ser e não ser? Fazer e não fazer? Mas se não é possível, o que há de errado em nós que nos percebemos assim? E mais uma vez as teorias que não são observadas no mundo e em nós não são vistas como más teorias; nós e o mundo é que estamos equivocados, afinal, as teorias, com suas bases estatísticas, comprovam o que é o real. Se não é possível ver ou ser dessa maneira, o erro está na impossibilidade que anseia negar a teoria, mas acaba por negar a si mesma.

Ser chique

Daniel Dennett, em Brainstorms, mostra como os que se autodenominam “chiques” estabelecem os critérios para ser “chique” e para aceitar no grupo dos “chiques” aqueles que se assemelham a eles, aqueles que garantem a reprodução de uma mesma forma de vida: “ser chique”. Não ocorre assim na vida cotidiana?

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Michel Foucault, em O Nascimento da Biopolítica, demonstra como o laisser faire do liberalismo (e das formas de neoliberalismo europeias e norte- americanas) promove a ilusão de liberdade, quando o que de fato ocorre é um forte controle sobre as formas de vida, incutido a partir de um processo de naturalização, fundamentado em pesquisas estatísticas. Com a naturalização, não é preciso obrigar alguém a agir, sentir, pensar de uma determinada maneira. No próprio exercício de sua “liberdade”, diante daquilo que é “natural”, e portanto comum a “todos”, “opta-se”, “deseja-se” ser “natural” e, consequentemente, “aquilo que todo mundo é, sente, pensa e faz”.

Há formas de resistir a tais processos? Há como constituir formas de vida independentes dos processos de “naturalização”? Em Hermenêutica do Sujeito, Foucault trata do “cuidado de si” como uma forma de resistência. Cuidado de si indissociável do cuidar da polis, do viver junto-com-o-outro. Em outras palavras, cuidar de si não consiste em ser egoísta, em fechar-se em si mesmo, em tornar-se idiota (clique aqui e leia). Consiste em conhecer a si mesmo, ao outro, ao mundo e, com base nos dados coletados, construir, criar, compor formas de vida tal como se compõem obras de arte.

Você já experimentou olhar para sua vida como uma obra de arte cujo autor é você mesmo? Mas o mais instigante é o fato de ser sempre uma obra inacabada, que se movimenta, se modifica o tempo inteiro. Hoje se faz de uma forma, amanhã de outra. Hoje são alguns materiais o essencial, ontem foram outros, e amanhã serão terceiros. Assim, tudo é possível, tudo pode ser construído, modificado. Mas como ser autor de si mesmo num mundo com tantos modelos, formas, regras? Qual a melhor forma?

Nas partilhas (consultas) em filosofia clínica é possível observar que não há uma forma única, melhor ou pior em si mesma. Há formas, há contextos, há pessoas. Para alguns, em determinados contextos, os mesmos materiais recebem formas distintas; para outros, são os materiais que necessitam ser modificados. A questão é: o que se quer fazer? Para onde se dirigir? Quais os caminhos possíveis, existentes ou a serem construídos? O que é necessário para trilhá-los?

As diferentes condições, assim como as diferentes formas de ser e de lidar com as questões provocam a diferença e a fazem legítima. Ao mesmo tempo em que é acalentador saber que há todas as possibilidades diante de nós, é desesperador percebê-lo, e pode ser mais desesperador considerar a responsabilidade por nossas escolhas e movimentos. Como você constrói o seu existir? Como escolhe seus modos de vida? Você se considera autor de sua própria vida? Se não, quem é o responsável pelos modos de sua existência?

Referências Bibliográficas:
DENNETT, D. Brainstorms. São Paulo: UNESP, 2006.
FOUCAULT, M. A hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
_____. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.