Vendo o que não se vê…

por Monica Aiub

Estive em Natal, no I Congresso Internacional de Ciência, Ética e Educação Integrada: vendo o que não se vê. Um belíssimo panorama de trabalhos, pesquisas, ações que são desenvolvidos em várias regiões de nosso país e no exterior.

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A ideia original: muitos profissionais desenvolvem projetos que contribuem para a construção de um mundo melhor, mas suas ações estão isoladas, ou circunscritas em uma região ou área de atuação e, por isso, não são conhecidas ou divulgadas suficientemente, ou ainda não encontram apoio e parceiros para constituir uma rede maior, que poderá ser efetivada a partir da integração desses diferentes profissionais, promovendo ações integradas e exercitando a ideia cantada por Raul Seixas, citada na mesa de abertura: “Sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade”.

Diferentemente de muitos congressos nos quais os profissionais de uma área se reúnem para apresentar suas pesquisas mas, terminado o evento, cada qual retorna a seu local de origem com novos conhecimentos para enriquecer sua prática e suas pesquisas, o congresso, em Natal, iniciou-se em sua tônica de integração nove meses antes, tendo já em sua gestação, a formação de núcleos, redes, que culminaram numa programação rica, intensa, plural e provocativa, num ambiente de integração, reflexão e aprendizagem.

Considerando a aprendizagem a realização de nossa plasticidade, de nossas movimentações, o primeiro resultado do congresso foi sua continuidade, através da criação da Associação Internacional de Ciência, Ética e Educação Integrada: Vendo o que não se vê. O objetivo da associação é ver o que não se vê, ouvir o que não se ouve, pensar o que não se pensa, fazer o que não se faz… Nesse campo a filosofia tem papel privilegiado, pois é seu hábito refletir sobre o óbvio, olhando o que todo mundo olha, mas vendo o que, habitualmente, ninguém vê.

O evento contou com a participação de representantes de várias associações, universidades e dos Ministérios de Educação, Saúde, Ciência e Tecnologia, Justiça, que não somente apresentaram as questões sobre as quais se debruçam, seus projetos e dificuldades, como viram e ouviram as questões, os encaminhamentos, e as dificuldades dos presentes, integrando a rede daqueles que desejam “ver o que não se vê” e se comprometem a “fazer o que não se faz”.

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Exemplificando, entre “aquilo que não se vê”, alguns problemas se destacam: apesar da existência de uma legislação que proíbe a exploração do trabalho infantil, ela ainda existe em nosso país e é, inclusive, baseada em argumentos sofismáticos que defendem a necessidade das famílias. Diante do quadro apresentado pela Drª Marinalva Cardoso Dantas, faz-se urgente a movimentação e ações efetivas para a erradicação da exploração do trabalho infantil, assim como para proporcionar condições adequadas, minimamente salubres, de trabalho para todas as pessoas.

Conseguiríamos nós constituir diferentes relações com o trabalho?

Seria possível considerá-lo como realização do humano, como propôs Marx, e não como, exclusivamente, um meio de exploração e lucro, que leva à destruição da vida?

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Reflexão

Em outras palavras, a necessidade de uma reflexão sobre nossas ações, considerando não apenas nossos interesses singulares, mas suas implicações em nossas vidas, relações, sociedade e seus impactos no ambiente. Isso significa nos vermos novamente como pensavam os primeiros filósofos: seres humanos em sua totalidade, integrados em suas múltiplas dimensões, pertencentes a uma sociedade e uma natureza, e construindo formas de vida que integrem essa totalidade de modo harmônico, afinando suas necessidades e possibilidades singulares, às necessidades e possibilidades da coletividade.

Entre aquilo que não se vê, também vimos a atuação de várias instituições, como a AVAPE (Associação para a valorização das pessoas com deficiência), que questiona o conceito de deficiência e cria condições de integração social a várias pessoas com necessidades especiais, substituindo o modelo assistencialista por um projeto que pretende proporcionar autonomia a seus participantes. Vimos também o projeto do IINN-ELS (Instituto Internacional de Neurociências de Natal – Edmond e Lily Safra), que leva a pesquisa científica a crianças e jovens, permitindo uma educação capaz de formar jovens pesquisadores, promovendo a produção de ciência em nosso país.

Esses são apenas poucos exemplos diante das muitas ações, reflexões, integrações apresentadas nesse belo panorama. O trabalho de integração foi apenas iniciado. Deixo a você, leitor, minha contribuição a respeito, e o convite àqueles que desejarem integrar a associação recém-constituída, participando dessa rede que pretende “ver o que não se vê” e “fazer o que não se faz”.

Vendo o que não se vê

“Vendo o que não se vê” suscita, imediatamente, a pergunta: o que se vê e o que não se vê nas questões de interface entre ciência, ética e filosofia?

Para abordar a questão na perspectiva filosófica, faz-se necessário, primeiramente, apresentar a tarefa da filosofia diante dos problemas e movimentos da vida cotidiana. Em seu primeiro instante: “o espanto”, a admiração diante do óbvio, admiração no sentido estético de maravilhar-se, encantar-se, ser tocado por, sensivelmente afetado, e por isso querer ir para além do óbvio, compreendendo sua gênese, suas bases, suas múltiplas interações com o entorno e possibilidades de ser. Mas também “o espanto”, no sentido estético de horrorizar-se, enojar-se, sendo tocado por, sensivelmente afetado a ponto de querer ir para além do óbvio, compreendendo, em sua gênese, se é preciso ser desta forma ou se há outras possibilidades de existência para além do óbvio.

Esse é o primeiro passo para a filosofia, espantar-se, ser provocado, ser tocado, ser movido à investigação, numa busca pelos fundamentos, pela gênese. E neste movimento de incessante busca, nos deparamos com as raízes, as origens de nossas questões. Raízes que se interconectam, que se misturam, num constante fluxo e movimento, gerando resultados, por vezes, inesperados. Encontrar raízes e percorrer o histórico da gênese de nossas questões pode nos levar a “ver o que não se vê”.

Vemos os problemas, mas não vemos, necessariamente, sua gênese. Por isso, muitas vezes, nos sentimos numa verdadeira armadilha, presos em problemas sem solução, diante de situações em que não há o que possa ser feito. Se enxergamos a questão a partir de nossa crença na insolubilidade do problema, não haverá motivos para nos movimentarmos em busca de uma solução. Por isso, a postura filosófica de questionamento a nossas crenças, de revisão da perspectiva a partir da qual lemos os problemas e seus contextos, de reflexão a nossos modos de ser, pensar e agir, de investigação poderá revelar elementos fundamentais à construção de novas possibilidades para lidar com nossas antigas ou novas questões.

Ainda no primeiro instante, o espanto que leva a investigar é acompanhado de uma insatisfação, uma inquietação, uma perturbação. É próprio do filósofo ser perturbado, inquieto, insatisfeito, no sentido de não se contentar com “aquilo que se vê”, com as respostas prontas, com as receitas padrão, com modos previamente determinados de existência. Especialmente se tais modos não permitirem ao ser humano a condução de seu próprio existir. Assim, o surgimento da filosofia é marcado por um ser humano que toma para si a tarefa de conduzir a própria vida, não aceitando mais a determinação dos deuses do Olimpo. É preciso, no caminho da filosofia, antes de aceitar algo, conhecer o que é este algo e que motivos temos para aceitá-lo. Nesse instante inicial, os motivos devem ser oriundos de elementos observados na própria natureza, na realidade circundante.

Por esse motivo, seu segundo instante: “o rigor metodológico”. Há quem pense que filosofia é uma divagação, uma derivação incessante de ideias. Mas o pensamento filosófico possui métodos, e são estes que nos permitem ir além do óbvio sem perder os referenciais dos contextos nos quais se inserem nossas questões. O rigor metodológico, desde as origens, exige a reflexão racional, lógica, com argumentos construídos de modo a atender os critérios de verdade e validade.

Instrumentos que permitem ao ser humano tomar para si a tarefa de conduzir a própria existência, filosofia e ciência surgem como formas de investigação da natureza, buscando nela as bases para a compreensão de nossos problemas, assim como as formas para solucioná-los ou, simplesmente, aprendermos a lidar com eles. Ambas fazem uso da lógica como método. Rapidamente, a ciência do ethos, ou a reflexão acerca das formas de condução da vida, surge para provocar o ser humano a refletir acerca das formas de cuidar de si, considerando – como muito bem lê Michel Foucault em Hermenêutica do Sujeito – cuidar de si como cuidar da polis, ou seja, um ser humano que é parte constituinte da natureza e da sociedade e, portanto, para sua integralidade, precisa conhecer-se para se harmonizar com elas, encontrando o equilíbrio necessário à felicidade.

Já na Ética a Nicômacos, Aristóteles apresenta a felicidade como fim último do ser humano. Contudo, diferentemente do que muitos compreendem atualmente, na concepção aristotélica não é possível ser feliz sem o equilíbrio mente-corpo, ou vivendo em uma sociedade desequilibrada, ou ainda, vivendo em um ambiente natural desequilibrado. Os desequilíbrios são, na perspectiva aristotélica, geradores de injustiças, de doenças. E não é possível a um cidadão manter-se são se a sociedade onde ele habita está doente.

Este cidadão situado em seus contextos, que coabita o mundo, era visto como um “animal político”, ou seja, um ser pertencente à natureza, e à sociedade. Desta forma, as mesmas leis que regem a natureza deveriam reger a organização política e, consequentemente, a condução de sua vida. Tratava-se, então, de conduzir sua existência de maneira a equilibrar-se com a natureza e constituir uma sociedade pautada nas mesmas leis naturais. Daí a importância do conhecimento para a condução da vida, e o papel da filosofia de promover o conhecimento de si para o cuidado de si, que nada mais era do que o cuidar da polis.

O transcorrer da história nos traz outras perspectivas, seccionando o ser humano, que perde a noção de pertencimento à natureza e à sociedade. O resultado disto é a constituição de modos de vida fragmentados, levando ao extremo de isolamento e exclusão, a ponto de considerarmos a depressão como a doença do século XXI. Por outro lado, grandes investimentos em pesquisas para atingir novos patamares de longevidade, novos tetos de qualidade de vida. Para onde nos dirigimos? Nossos novos patamares de longevidade permitem que vivamos mais, mas vivemos melhor? Nossos novos tetos de qualidade de vida observam o aumento na produção de bens, serviços e riquezas, mas vivemos melhor?

Somos felizes?

O que é ser feliz?

Com o imenso e constante desenvolvimento da ciência, nos dirigimos para atingir o equilíbrio necessário à felicidade?

Na interface entre ciência, ética e filosofia, há muito o que se refletir, o que se pesquisar. Há muito o que se ver naquilo que não se vê.

Dados os contextos contemporâneos de isolamento e exclusão, desconfiança, desequilíbrios, distúrbios e transtornos tornam-se eventos corriqueiros. De um lado, a tentativa de solucionar as questões que nos afligem modulando nosso cérebro com medicação; de outro, a tentativa de analgesia para as dores da existência. De um lado, um corpo modelado, esculpido e formatado segundo um padrão de beleza e de saúde; de outro um corpo que se movimenta cada vez menos, tendo como possibilidade da longevidade a incorporação de tecnologia. De um lado, relações cada vez mais superficiais e à distância, a solidão do isolamento que não nos permite partilha; de outro lado, depressão e suicídio. De um lado a tecnologia que incorporamos ao cotidiano; do outro as arcaicas e atuais relações de poder, de controle dos corpos, de biopoder. Isto é o que se vê? Ou o que não se vê?

Como nos vemos nestes contextos? Como lidamos com nossas questões? A quem recorremos quando não conseguimos enxergar uma saída àquilo que nos angustia?

É no contexto do século XXI que a filosofia volta a ser clínica, no sentido de promover o conhecer para cuidar, e o cuidar de si não como aquele que se fecha em si, egoisticamente, gerando um processo de idiotização – no sentido grego de fechar-se em si mesmo; mas como aquele que cuida de si cuidando das relações, da sociedade, do ambiente, e de todos os elementos de seu entorno, necessários a uma vida feliz.

O que é uma vida feliz? Dizia Erasmo de Roterdam, no Elogio da Loucura: “A felicidade consiste em ser aquilo que se é”.

Na busca de nos permitir ser aquilo que somos, a filosofia clínica não parte de um padrão, de uma teoria explicativa sobre o ser humano e seus modos de atingir a felicidade. Simplesmente aborda as questões da existência fazendo uso dos métodos filosóficos, e provocando aquele que busca esta partilha a refletir sobre os modos como conduz sua vida, assim como sobre as possibilidades de seu existir. Constitui-se como um espaço de convívio, de partilha, de movimentações existenciais a partir das constantes provocações ao pensar, permitindo ver aquilo que não se vê e, por este motivo, ser aquilo que se é.

Referências Bibliográficas:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília: UNB, 1985.
FOUCAULT, M. Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
ROTERDAM, E. Elogio da Loucura. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
Site do Congresso: www.congressinterceei.com