Futebol: o que está por trás da extrema violência entre torcidas?

por Roberto Goldkorn

Uma entrevista me impressionou acima da média. Um chefe de torcida de um time de futebol da Sérvia, acusado de chefiar um verdadeiro exército de torcedores fanáticos, disse ao repórter brasileiro que estava “disposto a morrer pelo seu time”. Antes o chefe da torcida rival havia dito que eles estavam preparados literalmente para tudo.

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O uso do futebol como mecanismo de extravasamento da mente animal irracional (porque nem todos os animais são irracionais no sentido mais profundo, a maioria só comete “violência” para se manter vivo e alimentado), sempre me horrorizou/fascinou.

Não vou dizer aqui que investi muito do meu tempo para investigar esse fenômeno de massas, mas pensei sobre o assunto, uma vez que comportamentos tão estupidamente universais me interessam. Uma das possibilidades que me vêm a mente é a dos programas tribais residuais. Nosso passado está cheio de mortais rivalidades entre tribos, clãs, famílias , feudos, etc. Os Montechio contra os Capuleto, os MacDonald contra os McGregors, os Tupinambás contra os Tapuias, católicos contra hereges e vai por aí.

A idade moderna aboliu muitas dessas fronteiras estreitas e ridículas, mas não fez a mesma cirurgia na mente profunda dessas pessoas, que projetam esses programas para as vidas vindouras. Da mesma forma que os traumas familiares, as doenças, as fobias muitas vezes nascem junto com o indivíduo aparentemente novo; muito desses ódios interculturais e intertribais sobrevivem. Na mente individual e coletiva os programas de “buscar e destruir os inimigos da minha tribo” afloram mas não encontram a tribo inimiga. Aí entre em cena o mecanismo cármico da “adaptação” ao novo ambiente. Esses “guerreiros” tribais vão parar nas torcidas dos times de futebol, nas hostes das religiões catequistas em suas miríades de denominações, em partidos políticos, mas nenhum campo é mais propício às tribos renascidas quanto o futebol.

No futebol todos os elementos simbólicos e de culto estão presentes: os hinos (de guerra), as cores, as bandeiras, a disputa com vencedores e vencidos, o orgulho tribal, a faculdade de pertencer a uma “nação”, o adversário que facilmente vira inimigo, os “demônios” negros na pele dos juízes e outros personagens das sombras, etc. Está tudo ali. Quando um jogo, que foi criado para divertir e juntar pessoas, se torna pretexto para uma regressão tribal, podemos, ou melhor, devemos desconfiar que algo de transcendente está em jogo.

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Claro que podemos ver tudo isso por outra lógica, a mercadológica. O jogo do dinheiro, dos milhões que acaba por tabela incentivando a estupidez humana sempre tão fácil de incentivar. As propagandas que estimulam esse espírito de tribo, do nós contra eles, são também um poderoso argumento. Sociologicamente podemos argumentar uma explanação sobre a falta de perspectiva dos jovens que veem na agressividade radical um meio de dar sentido às suas vidas vazias. Se procurarmos vamos achar ainda mais possibilidades, desde as hipóteses antropológicas até as genéticas. Mas cada vez que vejo uma torcida nas ruas empunhando paus, pedras e até armas de fogo contra os inimigos, me transporto para uma época passada onde jovens guerreiros de uma tribo atacavam e tentavam massacrar outra.

No tempo de minha juventude eram as “turmas” de ruas. Defendíamos as nossas ruas como se elas precisassem ser defendidas, e nos uníamos com nossos inimigos da rua paralela contra invasores do outro bairro ou de outra zona. E nessa época não tão remota as cervejas não incentivavam as rivalidades nem os patriotismos.

A quem essa especulação pode interessar? A todos nós. A medida que abrimos nossa mente a entrada das entidades culturais pré-fabricadas, nós nos arriscamos a perder nossa humanidade. Entenda-se por humanidade as potencialidades humanas, racionais e evolutivas.

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Ao aceitar o pacote cultural tribal por exemplo, o sujeito abre mão de sua individualidade, de sua possibilidade de nessa vida dar um passo adiante e regride. Volta ser membro da tribo de um passado longínquo, um robô de carne e osso mas sem cerebro próprio, uma vez que esse está sendo usado pelo programa tribal/passado. O mesmo pode acontecer com pessoas em transe cultural, sentimental, religioso ou político. Renunciar ao próprio pensar, ao pensar do seu tempo e da razão pode ser mais cômodo, mais fácil, mas é fazer gol contra, e dar a vitória aos adversários da vida.