Saiba como como encarar a separação

por Grupo de Aprimoramento Junguiano sobre Questões Amorosas – Clínica Psicológica PUC/SP

A experiência da separação é a experiência de viver. A nossa chegada a este mundo se configura como a primeira e grande separação. Somos literalmente expulsos – muitas vezes arrancados – de uma situação de plena tranqüilidade e segurança, de "paz oceânica" como Freud a descreveu, e trazidos a um mundo completamente novo, onde um incrível número de cheiros, cores, sensações, sabores e ruídos nos são apresentados de forma repentina e pungente.

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Se por um lado somos destituídos deste locus de paz e simbiose, por outro nascemos de fato. E então apresenta-se o paradoxo inerente à separação: uma situação traumática, que nos marca pelo resto de nossa existência; mas também a possibilidade de experimentarmos tudo aquilo que nos aguarda: a vida.

A temática da separação acompanha a espécie humana desde os primórdios de sua existência. O mito da Criação é um excelente do tema separação. De acordo com Gênesis:

"(…) Deus pôs o homem no Jardim do Éden e disse: 'De toda a árvore do jardim comerás livremente; mas da árvore da ciência do bem e do mal não comerás, porque no dia em que delas comeres, certamente morrerás'. A isso se seguiu a criação de Eva a partir da costela de Adão e a tentação de Eva pela serpente, que lhe disse: 'Não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dela comerdes se abrirão vossos olhos e sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal'. E assim Adão e Eva comeram o fruto. 'Então foram abertos os olhos dos dois e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais'. Deus descobriu a desobediência deles e os amaldiçoou, dizendo em seguida estas significativas palavras: 'Então disse o Senhor Deus: 'Eis que o homem tornou-se um de nós, conhecendo o bem e o mal; ora, pois para que não estenda sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente – e assim o Senhor Deus os lançou fora do Jardim do Éden, para lavrar a terra de fora tomado. Ele lançou fora o homem, e pôs o querubim ao oriente do Jardim do Éden, e uma espada flamejante que andava ao redor, para guardar o caminho da árvore da vida" ( Gênesis, 2-3, apud. Edinger, 2000).

De modo análogo ao nascimento, Adão e Eva encontravam-se num estado que podemos qualificar como um estado inicial, inconsciente e animal, formando uma só unidade com Deus : o paraíso. Este estado é paradisíaco porque não há indícios do aparecimento da consciência e, portanto, não há conflito. Tal qual nosso estado original – antes de nosso nascimento – o ego está contido no útero do Si-mesmo (inconsciente).

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Desse modo, o mito descreve o nascimento da consciência como um crime que aliena, separa homem de Deus e de sua unidade pré-consciente original. O fruto, sem dúvida, parece representar a consciência, uma vez que é o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, o que significa que traz a consciência dos opostos, característica específica da consciência.

Em termos psicológicos, e mais especificamente, dentro da perspectiva da Psicologia Analítica – a serpente pode ser entendida como o princípio da gnosis, do conhecimento ou consciência emergentes. A tentação da serpente, longe de ser algo maléfico ou destruidor, representa a necessidade de auto-realização do homem e simboliza o princípio da individuação. Seguindo esta linha de pensamento, então, o ato de comer o fruto proibido marca a transição do estado eterno de unicidade inconsciente com o Si-mesmo, estado este caracterizado como "sem mente", animal, para uma vida real e consciente no tempo e espaço. E este processo de "nascimento" traz como resultado a alienação, ou separação do ego em relação às suas origens: o ego agora passa a um mundo de sofrimento, conflito e incerteza.

Outro importante aspecto da queda que devemos nos deter diz respeito ao fato de que Adão a Eva se dão conta de sua nudez, ou em outras palavras tornam-se conscientes desta. Tanto sua sexualidade como seus instintos tornam-se subitamente tabus e objetos de vergonha. Percebemos então a criação por intermédio da consciência uma contrapartida da função animal e instintiva, de modo que a dissociação, a dualidade e a repressão "nascem" simultaneamente ao "nascimento" da consciência. A partir desta constatação, uma importante implicação se apresenta: a consciência, para existir de direito, deve, pelo menos em seus estágios iniciais, ser antagônica com relação ao inconsciente.

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Assim, o mito da queda exprime um padrão e um processo não só do nascimento da consciência em relação ao inconsciente, mas também o faz em relação ao processo pelo qual passamos ao expandir nossa consciência: o sacrifício do conforto pacífico pela obediência (representado na simbiose original) para obter mais consciência. Nesse sentido podemos entender o símbolo da serpente como um símbolo de benfeitoria, desde que atribuamos à consciência um valor maior do qual atribuímos ao conforto passivo.

A proposta é que, a partir do Mito de Criação, possamos olhar a questão da separação por uma outra perspectiva. Podemos, de fato, encarar o ocorrido como um crime: Adão e Eva não deveriam ter se servido do fruto proibido. Mas a questão é que, no sentido de se expandir nosso foco consciente devemos, muitas vezes, ir contra o status quo, o estabelecido. É uma questão de podermos ousar, encontrar respostas fora do padrão, construir nosso próprio caminho.

É evidente que seguir uma trilha já estabelecida é mais confortável, e em certa medida, mais seguro. O fato, porém, é que só chegaremos a lugares já conhecidos, já desbravados, destituídos de mistério e surpresa. Adão e Eva ousaram. Pagaram o preço e "caíram" do paraíso. Este processo se por um lado é doloroso e definitivo, por outro possibilitou a expansão e o alargamento da consciência. Muitas vezes aquilo que se constitui um crime num dado estágio do desenvolvimento psicológico assume caráter legal (na acepção jurídica da palavra) noutro estágio, sendo que esta transição (de um estágio mais primitivo para outro de maior consciência) não é possível sem ousar desafiar o estabelecido.

No plano dos relacionamentos amorosos não encontramos grandes diferenças. A instituição do casamento apresenta sinais evidentes de fadiga, levando a uma situação tal que, de um modo ou de outro, somos levados em bases diárias a rever nossas antigas ideologias e conceitos.

O paulatino aumento de nossa consciência no decorrer do tempo nos leva à percepção de uma série de conteúdos que por sua vez nos levam a uma evidente situação de conflito.

De acordo com um recente estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – publicado no jornal A Folha de São Paulo (Dez. 2004) "os brasileiros estão se casando mais tarde e se separando ou divorciando mais" (FSP, 22/12/2004, Cotidiano). O número de casamentos no período contemplado pelo estudo (1993 – 2003) ficou estável (747 mil/93 – 749 mil/03), sendo que houve significativa mudança na média de idade ao se casar: em 1993, a idade média para homens era de 27,1 anos e, para mulheres, 24 anos. Em 2003, a idade média para os homens subiu para 30,6 anos e a idade média para mulheres subiu para 27,2 anos.

Já o número de divórcios cresceu 46%, passando de 95 mil em 1993 para 139 mil em 2003. A pesquisa também mostra que a maioria das separações – 78% em separações e 69% em divórcios – são consensuais. Quando não é consensual na maioria das vezes o pedido parte da mulher.

Estes números, por si só, falam de grandes mudanças que vem ocorrendo tanto em termos pessoais como coletivos em nossa sociedade atual.

Por um lado, o fato dos números de casamentos realizados se manterem estáveis nos fala de uma instituição profundamente arraigada, cujo poder se expressa nos dados acima referidos. Porém, por outro lado, o número de separações e divórcios nos aponta uma real e indiscutível insatisfação com esta maneira instituída de se relacionar. Então nos damos conta de um grande paradoxo: continuamos nos casando na mesma freqüência; mas nos separamos mais.

A busca por um parceiro é uma necessidade humana, o que explicaria a busca pelo modelo de relacionamento estabelecido. Nascemos dentro de um grupo (nossa família, nossa sociedade, nosso país, e assim por diante) onde, aos poucos construímos nossa identidade. E esta identidade, pessoal e única, só pode crescer à medida que nos relacionamos com nossos pares. É através da observação e da convivência que introjetamos códigos e formas de conduta que nos permitem viver em conjunto.

Num determinado ponto de nossa existência, porém, a exemplo de Adão e Eva, somos chamados a experimentar o "fruto do conhecimento", ou em outras palavras, a expandir nossa consciência e buscar nosso caminho. E a temática da separação, que nos marca desde nosso nascimento como espécie (âmbito coletivo) e como indivíduos (âmbito pessoal) – se apresenta: devemos renunciar àquilo que é seguro, confortável, porém passivo, em detrimento daquilo que será nosso, individual, enfim, a marca pessoal do sopro divino de vida que nos habita.

Fica claro que a questão da separação encerra muitas facetas: apresenta um lado de sofrimento e angústia; apresenta-se, também, como possibilidade de transformação. E então nos perguntamos: qual o sentido da separação? Esta pergunta deve ser respondida no âmbito pessoal, dentro do contexto da individualidade e cada vida, mas algo é certo: a separação pode ser entendida sob duas perspectivas.

Numa delas, pode ser tomada como perda, crime e decepção. Neste caso só nos reste sofrer. Há outra possibilidade, entretanto: tomarmos o processo de separação como possibilidade de expansão de nossa consciência, e de maneira ética e holística (total), procurarmos o sentido em nossas vidas. A exemplo de Adão e Eva, podemos sofrer com a perda do paraíso ou podemos nos dedicar à expansão – ética – de nossa consciência e re-encontrar o paraíso na forma de uma existência mais integrada em relação aos nossos conteúdos inconscientes.