Errar é um arte: ser humilde nos torna férteis e criativos

por Pedro Tornaghi

Fico pensando por que será a humildade tão difícil, já que é tão bela. O que suscitou o questionamento foi a reação do técnico de futebol do país, ao defender e tentar justificar o injustificável após a massacrante derrota de sua seleção. Seu esforço para convencer a todos de que tinha feito o trabalho certo parecia patético, não havia a menor possibilidade de persuadir a um único ouvinte a trocar o óbvio dos fatos por sua versão esfarrapada.

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Três dias antes da partida, zapeei a TV na hora dos telejornais e vi em três diferentes emissoras de grande audiência, times de comentaristas concordarem em unanimidade que a maneira de fazer frente à forte seleção alemã era povoar o meio-de-campo, colocar ali quatro jogadores, como havia feito a Costa Rica, como faria em seguida a Argentina, que com times inferiores, conseguiram dar trabalho ao timaço alemão.

Ambos optaram pelo oposto de Scolari. Por que não reconhecer o erro, e todos os demais da preparação, não teria o passe dele saído menos combalido da tragédia? Quem quererá contratar um técnico que mostra não saber ler um jogo e ainda se diz inconsciente da própria ignorância.

E, o que dizer do partido que governa o país há mais de uma década, que nunca se mostra disposto a refletir sobre uma crítica, se atém, em vez disso, a reagir com acusações a adversários.
Admitir erro requer desapego do ego

Não estariam em posição bem mais tranquila em pesquisas de intenção de voto se tivessem agradecido e digerido as diversas acusações, metamorfoseando-as em autocrítica e em mudanças de rumos, onde o bom senso se mostrasse mais presente que em suas atitudes anteriores? Será que estariam com tamanho índice de rejeição?

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Admitir um erro ou atitude inconveniente é belo, eleitores e torcedores gostam de ver o lado humano em seus líderes e a vontade de acertar. Não parece ser uma estratégia inteligente de marketing, nem do técnico nem do partido no poder. Aparenta ser, sim, mera reação. Um traço de imaturidade difícil de entender em adultos com posição de tanta proeminência social.

Admitir um erro requer desapego do ego. E não é o fim, como aqueles que estão em posição de poder costumam acreditar, mas muito mais um começo, um começo de uma atitude mais afinada, quiçá mais próspera. Admitir um erro é mostrar que se é falível e humano e isso cria uma atmosfera propícia para a aproximação dos outros; negar, estimula o afastamento, ou ao menos inibe a aproximação. Admitir um erro é mostrar que se é mais hoje do que se era ontem. Juscelino Kubitschek disse um dia: "Costumo voltar atrás, sim. Não tenho compromisso com o erro."

O tanto que se esforça o marketing da presidência para seduzir o eleitor quando diz "vote em mim para a mudança"… eles certamente convenceriam melhor se embarcassem na dica de Juscelino e dissessem e mostrassem: "Erramos, mas reconhecemos e agora estamos melhores". Mesmo com todo o apego ao poder e revelando-se óbvio que a postura de durona não está convencendo, não é fácil identificar sinais de vulnerabilidade na postura da presidenta. Assim como na do técnico Scolari. Bom, o artigo não é para julgá-los, mas para estudá-los, aprender com eles. Se eu os estiver julgando, perdão desde já, mudemos de tom.

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Admitir um erro é admitir que não se estava no controle até então, e talvez por isso seja tão difícil para tantos. Vivemos em uma sociedade controladora, onde convencionou-se que vale mais quem controla mais. O que é um equívoco, se não uma falácia. Mostrar vulnerabilidade é visto como algo temeroso, mesmo que seja comovente e belo. Então, qualquer esforço para estar no comando parece ser justificável para eles.

Me lembro de uma cena no final dos anos 80, quando eu estava na Índia e conheci o Swami Kabir que dirigia um trabalho original e interessante de terapia astrológica no Ashram do Osho. Houve uma grande empatia entre nós e uma admiração mútua pelo trabalho um do outro. Kabir me propôs que passássemos a trabalhar juntos, mundo afora como ele costumava fazer, dando cursos e grupos de crescimento. Ele era uma personalidade estabelecida, tinha meia dúzia de assistentes, alguns o acompanhavam há anos, destacando-se uma astróloga alemã que aparentemente não se conformou em eu ter acabado de chegar por ali e já ser considerado sócio, enquanto ela se dedicava há anos àquele trabalho e continuava como assistente.

Todo dia eram nítidos os olhares de soslaio dela em minha direção. Um dia, entrando no Ashram, ela me disse "Pedro, há uma coisa que tenho que compartilhar com você: não sei por que, mas sempre que olho para você tenho a forte sensação de que eu estou certa e você errado!" Sorri para ela e sugeri: "Quanto a mim, você não precisa ter dúvida, eu estou errado, mas o que você vai fazer com essa convicção de que está certa, isso é com você, em relação a isso não imagino como te ajudar." Aquela mulher guerreira e durona, de repente parou desconcertada na porta do ashram. E eu saí com a certeza de que Lao Tse estava certo ao afirmar que ser tolo tem vantagens. E do quanto é difícil para alguém de educação europeia, perder o controle.

Ter que ter razão é uma doença

Saí tão leve da conversa que me pareceu mais claro do que nunca, como é gratificante não ter razão ou não ter que tê-la. Ter que ter razão é uma doença. Ou ao menos um sintoma. Sintoma de que se carrega um estado de tensão e estresse crônicos dentro de si. Em nome de quê? De uma honra? Conferida por quem? Por algum tirano que elogia e premia quem consegue estar com a razão? Qual é a recompensa? Um – falso – sentimento de inserção social. Falso sim. A que levou a certeza daquela astróloga alemã? Kabir era um experimentalista, um inovador, nunca a adotaria como sócia por ela estar sempre com a razão. Era estratégia errada mesmo para ela que acreditava em caminhos assim.

Admitir que não se está certo, que não se possui a certeza, envolve humildade e gera fertilidade em quem o faz. Não o tipo de humildade que faz a pessoa se sentir superior por ser mais humilde que a outra, mas a humildade de que falam Lao Tse e o Tao, que nasce naturalmente quando percebemos que o controle que tínhamos da situação era tão falso quanto a promessa de que seríamos felizes se a controlássemos. A humildade que nasce de sabermos que não podemos controlar por que não somos entidades separadas do Universo, existimos como parte dele, somos "um" com ele. A cada vez que comemos ou respiramos, o universo entra em nós, passa por nós e se vai. Como pretender ser algo separado dele?

Admitir "erros" gera vida, não admiti-los torna a pessoa estéril. A palavra humildade vem da mesma raiz da palavra humus; ser humilde e saber que se é apenas parte desse Universo, nunca mais que ele, mas ele em si, ser humilde nos torna férteis e criativos. E seres criativos tornam-se também responsáveis. Assumir "erros" nos torna responsáveis. O que talvez seja parte do motivo para que se tema admiti-los. A atitude de assumir um erro aponta para a mudança e o crescimento, negá-lo aponta para a estagnação.

Dizem que Thomas Edson todo dia ao escurecer, tinha ataques de fúria e mau humor e por vezes chegava a quebrar todo o seu laboratório, frustrado por mais um dia de tentativas e esforços hercúleos e em vão, sem chegar a descobrir a fórmula da lâmpada elétrica. No dia seguinte acordava leve e de bom humor e dizia: que bom, falta um erro a menos para descobrir a lâmpada.

Negar o erro é negar o aprendizado que a experiência proporciona. Se a pessoa souber olhar, um erro reconhecido pode ser uma oportunidade de ouro, da pessoa se livrar do fardo de falsas crenças no sucesso, do fardo de compromissos assumidos anteriormente e que não se mostram produtivos ou legítimos.

Embora seja um direito nosso, cometer os próprios erros, podemos também aproveitar os dos outros para aprender. E ficarmos gratos por isso. Posso por exemplo, ao ver um técnico de futebol com dificuldades de mudar de comportamento, aproveitar a ocasião – como um alerta – para ver onde eu também ando insistindo em algo que não me tem levado aonde eu pretendo chegar, onde estou teimando por repetição inconsciente. E, a partir disso, mudar. Críticas são para serem agradecidas. Como sugere o Tao, o tolo rebate críticas, o sábio as agradece.

Os poemas de Lao Tse no Tao te King sugerem como um todo, que a humildade traz mais frutos que a arrogância. Diz ele no poema 78: "Nada no mundo demonstra mais suavidade que a água/No entanto, dentre as coisas que atacam o que é duro e forte, /nada a supera ou pode barrá-la. // Portanto, / o fraco vence o forte, / a maleabilidade suplanta a rigidez, // Quase todos conhecem essa verdade, / Entretanto, poucos a praticam." Já lá atrás, há mais de dois mil anos os que detinham o poder tinham dificuldade de escutar e admitir fraquezas. Impressiona a persistência da teimosia.

Se não admitir erro é infantilidade, admiti-lo é maturidade. O nome Lao Tse significa menino velho, sim, em seu nome ele já carrega sua obra, saber amadurecer sem perder a maleabilidade e naturalidade da criança é a arte do Tao, saber chegar no oceano com a mesma pureza da água que um dia brotou na fonte é o seu segredo.