Será que sou um ‘deficiente visual crônico’?

Por Roberto Goldkorn

Há situações ou apenas cenas que nos marcam profundamente e deflagram processos de consciência ou crítica. Aconteceu comigo quando ainda morava no Rio na década de 70. Estava passando no centro da cidade, quando ouvi um homem apregoando algo: "Compre balas de coco do único cego autêntico do Largo da Carioca!"

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Fiquei matutando: se ele é cego mesmo, como sabe que os outros não são? Por ouvir dizer? Por constatação ao vivo? Algum tempo depois li uma frase do Millor que invertendo o sentido de um ditado tradicional disse: "pior cego é aquele que quer ver".

Andando de Metrô em SP ouvi, mesmo sem querer, uma conversa de dois rapazes: "Puxa cara, esses cariocas são mesmo malandros. Fui ao Rio em plena semana e passei pela praia, estava cheia de gente. Êta povo vagau." (para quem não sabe quer dizer malandro). Tive de me controlar muito para não entrar na conversa, mas registrei o fato, e apenas argumentei mentalmente: "Seu tolo, não lhe ocorreu que muitas daquelas pessoas ali, são turistas em férias? Também não lhe ocorreu que em SP há também neste exato momento milhares de pessoas nas piscinas, e não nas praias porque não as há?

Por último. Fui levar o carro numa oficina, em frente a qual operários estavam asfaltando a rua. Um dos rapazes mecânicos perguntou para o outro: sabe porque eles estão asfaltando essa rua? O outro com um sorriso no rosto cheio de espinhas e certezas respondeu: "Claro, é porque o prefeito mora nessa rua!" Pensei em esclarecê-los de que em minhas andanças pela cidade, passei por várias ruas e avenidas que estavam ou foram recém recapeadas. Mas eles amarrados fisicamente aquele ponto do mapa, só viam o que lhes passava em frente aos olhos, ou seja nada viam.

As filosofias oriental e ocidental há muito já se debruçaram sobre esse fenômeno de "cegos" que querem ver e produzem visões de mundo deformadas, mentirosas e fraturadas. Infelizmente não se pode escapar dessa sina. Não há como ver o todo, em todas as direções e através do tempo, mas há como saber disso, e ser cuidadoso (humilde) com as nossas visões de mundo e atitudes baseadas nela.

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Enquanto somos simples mortais que apenas vagamos pelas ruas, isso afeta proporcionalmente as nossas vidas, ou seja, afeta de forma mínima. Mas quando somos dirigentes, governantes e podemos decidir a vida de muitos, isso é catastrófico. Ver apenas uma pequena parte, "analisar", julgar, e estender esse julgamento ao todo, pode ser chamado de pré-conceito, mas na verdade é uma recriação falsificada da ego-realidade, fingindo ser a realidade.

Não vou desta vez citar exemplos de personagens que com sua "deficiência visual" influenciaram o mundo na religião, na política e na ciência, pois já tenho inimigos-leitores o suficiente, um deles me disse: "Nunca leio seus artigos porque são péssimos". Mas eles abundam. Essa "deficiência visual", e perceptiva, é piorada quando o sujeito leva-se demasiado a sério, ou acha-se imbuído de alguma missão redentora da humanidade. Por mais paradoxal que seja, os "deficientes visuais" querem "ver", e muitos empenham suas vidas na tarefa de impor a sua "visão" ao maior número de pessoas a sua volta.

Assim como para a oftalmologia, existem diversos graus e patologias das deficiências visuais, nas deficiências entre aspas também. Podemos encontrar desde "míopes" que podem receber lentes educacionais corretivas, que melhorem o alcance e a nitidez de sua visão, até aqueles com espessas e inoperáveis cataratas que, quanto mais "cegos" ficam, mais afirmam que estão vendo a "realidade" e a "verdade".

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Como reconhecer um "deficiente visual" crônico e perigoso?

a – São categóricos em tudo que afirmam, não são permeáveis ao contraditório, ou às saudáveis dúvidas.
b – Em geral também são "deficientes auditivos", nunca ouvem argumentações que sejam contrárias as suas crenças, por mais sensatas e verdadeiras que sejam.
c – Levam as demandas sempre para o lado pessoal, e consideram uma extensão de si, os objetos ou pessoas que julgam lhes pertencer.
d – São capazes de malabarismos oratórios dos mais esdrúxulos, para defender seus pontos de vista deficientes, preferindo sempre desqualificar o outro, a discutir os fatos.
e – Muitos são paranóicos; atribuem a conspirações e maquinações de inimigos, os males que os acossam (quase sempre causados por sua incapacidade crônica de ver).
f – Transformam amigos em inimigos com a mesma facilidade que entornam litros de uísque, e com isso vão cavando mais fundo sua fossa.
g – São rancorosos praticantes e projetam nos outros, a ingratidão que deveras praticam.
h – Como não enxergam um palmo diante do nariz (e no fundo sabem disso) criam um esquema defensivo de vida, onde a rapidez em sacar a arma é sua linha de frente. Têm respostas pré-fabricadas na ponta da língua ferina, para cada "acusação", e sua palavra mais amada é "Não".

É uma longa lista, e estará sempre incompleta, mas creio que pode ajudar você, a identificar o "deficiente" e se possível fugir dele como o diabo fugia da cruz em tempos muito recuados.