O que realmente importa: a forma ou o conteúdo?

por Roberto Goldkorn

Eu o conheço há mais de vinte anos. De lá para cá seus cabelos (assim como os meus) ficaram mais prateados e o rosto mais enrugado, fora isso ele continua praticamente o mesmo. Tenho encontrado com ele aos domingos numa feira de artesanato na minha cidade. Sempre de gramofone colado à boca, ele agora chama os passantes de "manés" por aceitar passivamente os desmandos políticos.

Continua após publicidade

Não sei o seu nome, mas todos o conhecem como O Politizador epíteto que ele mesmo se deu. Não sei como vive, ou seja, como sobrevive se ao que tudo indica sua missão de politizar os manés é de tempo integral.

O interessante, na verdade, o núcleo desse artigo é que sua visão crítica da cena política brasileira é perfeitamente lúcida. Fala dos escândalos financeiros, dos políticos corruptos, das "maracutaias" como ele mesmo diz e da ausência de ativismo do povo. Nas últimas eleições fez campanha para deputado federal, e ameaçou a todos: "Se eu não for eleito, vou embora dessa cidade". Não ganhou, e está de volta à praça sem vergonha de pagar esse mico, quase um gorila.

Ele me lembra um outro "profeta" chamado de Gentileza que desfilou sua "filosofia" pelas ruas do Rio por muitos anos, tornando-se um personagem a mais do rico folclore carioca. Sua mensagem era: gentileza gera gentileza. Mas todos o viam apenas como um destrambelhado, um louco manso, inofensivo mas sem relevância maior. Suas mensagens pacifistas nunca foram sequer ouvidas nem mesmo lidas (uma vez que ele deixou dezenas de mensagens escritas em colunas do centro da cidade).

Esses são exemplos radicais dos loucos-lúcidos, que acertam no conteúdo, mas erram na forma. O que dizem ou apregoam é correto, coerente, faz todo sentido, mas a forma em que se apresentam sofre uma rejeição condescendente por parte da sociedade "normal".

Continua após publicidade

Esses são exemplos radicais de uma falta total de sintonia entre a embalagem e o conteúdo e de como um bom conteúdo pode se perder inteiramente se for apresentado de uma forma equivocada (do ponto de vista da cultura dominante). Entre os círculos iniciáticos há um ditado que reza: "Não importa quem diz, mas sim o quê diz". Mas não vivemos em círculos iniciáticos e a sociedade em geral sofre de um emburrecimento crônico sempre que se configura culturalmente. Como dizia Jung: "Cinco ou seis pessoas geniais quando se reúnem viram uma só cabeça de bagre".

Quantos de nós embalamos boas mensagens em formatos inapropriados, para os quais a sociedade é refratária? Tive um cliente que era alcoólatra. Sempre que ele vinha para as consultas alcoolizado seu discurso era fascinante, profundo, poético/filosófico e me encantava, mas eu não podia admitir aquele comportamento, muito menos reforçá-lo com uma reação de admiração e deleite. Assim fui obrigado a impor um "ou dá ou desce", ou ele vinha sóbrio para as consultas ou não deveria vir mais. E foi o que ele fez, ou melhor, o que ele não fez. Soube depois que a mulher e os filhos o abandonaram, e que ficou sem emprego também. Ele não era violento, nem perturbava a ordem de nenhuma maneira, apenas ficava mais "inteligente" mais sagaz, dizia coisas muito pertinentes e de forma graciosa, mas estava bêbado. Se estivesse numa sociedade de magos e adeptos talvez fosse visto como um grande guru, pois as pessoas focariam no que ele estava dizendo e não em sua carcaça encharcada de cachaça.

Muitas pessoas se sentem incompreendidas, discriminadas, como a personagem da garota de programa do folhetim global Paraíso Tropical ao chegar a ambientes "chiques" com roupas escandalosas. Ela acha que pode migrar de um estrato social para outro sem fazer as necessárias adaptações e sem ser barrada no baile. Ela acha que por ser bem-vinda na cama de um executivo metido a bacana, também o será na sua mesa.

Continua após publicidade

Essa ausência de sentido de realidade é um indicativo de desequilíbrio intelectual e emocional. Você pode até acusar a sociedade de ser hipócrita, de tudo não passar de uma farsa em grande escala, e da sociedade ser um grande palco iluminado, etc. Isso não tem a mínima importância. Insurgir-se contra o status quo de maneira aloprada é como investir contra moinhos de vento achando que são dragões e que você é o paladino revolucionário que vai trazer a "nova ordem".

No fundo, pessoas assim marginais, outsiders, vão compor uma categoria crescente dos "sem-noção". São os inadaptados, os peixes fora d'água, que no máximo serão tolerados por seu alto teor de folclorismo, mas não meterão medo em ninguém e continuarão à margem. O "politizador" tem toda razão quando nos chama a todos de manés políticos, mas vindo de um "palhaço de triste figura" isso nem faz "cosquinha".

O que realmente importa: a forma ou o conteúdo?

por Roberto Goldkorn

Eu o conheço há mais de vinte anos. De lá para cá seus cabelos (assim como os meus) ficaram mais prateados e o rosto mais enrugado, fora isso ele continua praticamente o mesmo. Tenho encontrado com ele aos domingos numa feira de artesanato na minha cidade. Sempre de gramofone colado à boca, ele agora chama os passantes de "manés" por aceitar passivamente os desmandos políticos.

Continua após publicidade

Não sei o seu nome, mas todos o conhecem como O Politizador epíteto que ele mesmo se deu. Não sei como vive, ou seja, como sobrevive se ao que tudo indica sua missão de politizar os manés é de tempo integral.

O interessante, na verdade, o núcleo desse artigo é que sua visão crítica da cena política brasileira é perfeitamente lúcida. Fala dos escândalos financeiros, dos políticos corruptos, das "maracutaias" como ele mesmo diz e da ausência de ativismo do povo. Nas últimas eleições fez campanha para deputado federal, e ameaçou a todos: "Se eu não for eleito, vou embora dessa cidade". Não ganhou, e está de volta à praça sem vergonha de pagar esse mico, quase um gorila.

Ele me lembra um outro "profeta" chamado de Gentileza que desfilou sua "filosofia" pelas ruas do Rio por muitos anos, tornando-se um personagem a mais do rico folclore carioca. Sua mensagem era: gentileza gera gentileza. Mas todos o viam apenas como um destrambelhado, um louco manso, inofensivo mas sem relevância maior. Suas mensagens pacifistas nunca foram sequer ouvidas nem mesmo lidas (uma vez que ele deixou dezenas de mensagens escritas em colunas do centro da cidade).

Esses são exemplos radicais dos loucos-lúcidos, que acertam no conteúdo, mas erram na forma. O que dizem ou apregoam é correto, coerente, faz todo sentido, mas a forma em que se apresentam sofre uma rejeição condescendente por parte da sociedade "normal".

Continua após publicidade

Esses são exemplos radicais de uma falta total de sintonia entre a embalagem e o conteúdo e de como um bom conteúdo pode se perder inteiramente se for apresentado de uma forma equivocada (do ponto de vista da cultura dominante). Entre os círculos iniciáticos há um ditado que reza: "Não importa quem diz, mas sim o quê diz". Mas não vivemos em círculos iniciáticos e a sociedade em geral sofre de um emburrecimento crônico sempre que se configura culturalmente. Como dizia Jung: "Cinco ou seis pessoas geniais quando se reúnem viram uma só cabeça de bagre".

Quantos de nós embalamos boas mensagens em formatos inapropriados, para os quais a sociedade é refratária? Tive um cliente que era alcoólatra. Sempre que ele vinha para as consultas alcoolizado seu discurso era fascinante, profundo, poético/filosófico e me encantava, mas eu não podia admitir aquele comportamento, muito menos reforçá-lo com uma reação de admiração e deleite. Assim fui obrigado a impor um "ou dá ou desce", ou ele vinha sóbrio para as consultas ou não deveria vir mais. E foi o que ele fez, ou melhor, o que ele não fez. Soube depois que a mulher e os filhos o abandonaram, e que ficou sem emprego também. Ele não era violento, nem perturbava a ordem de nenhuma maneira, apenas ficava mais "inteligente" mais sagaz, dizia coisas muito pertinentes e de forma graciosa, mas estava bêbado. Se estivesse numa sociedade de magos e adeptos talvez fosse visto como um grande guru, pois as pessoas focariam no que ele estava dizendo e não em sua carcaça encharcada de cachaça.

Muitas pessoas se sentem incompreendidas, discriminadas, como a personagem da garota de programa do folhetim global Paraíso Tropical ao chegar a ambientes "chiques" com roupas escandalosas. Ela acha que pode migrar de um estrato social para outro sem fazer as necessárias adaptações e sem ser barrada no baile. Ela acha que por ser bem-vinda na cama de um executivo metido a bacana, também o será na sua mesa.

Continua após publicidade

Essa ausência de sentido de realidade é um indicativo de desequilíbrio intelectual e emocional. Você pode até acusar a sociedade de ser hipócrita, de tudo não passar de uma farsa em grande escala, e da sociedade ser um grande palco iluminado, etc. Isso não tem a mínima importância. Insurgir-se contra o status quo de maneira aloprada é como investir contra moinhos de vento achando que são dragões e que você é o paladino revolucionário que vai trazer a "nova ordem".

No fundo, pessoas assim marginais, outsiders, vão compor uma categoria crescente dos "sem-noção". São os inadaptados, os peixes fora d'água, que no máximo serão tolerados por seu alto teor de folclorismo, mas não meterão medo em ninguém e continuarão à margem. O "politizador" tem toda razão quando nos chama a todos de manés políticos, mas vindo de um "palhaço de triste figura" isso nem faz "cosquinha".