Massacre à domestica no Rio: pais têm culpa?

por Roberto Goldkorn

Recentemente fomos socados na boca do estômago pela notícia do espancamento gratuito de uma mulher – no caso a doméstica Sirlei Dias – que esperava o ônibus. Os autores da heróica façanha foram cinco jovens de classe média (expressão de espanto OH!) que voltavam de uma balada, ou da naite como dizem no Rio. Entopem-se as mídias, convocam-se os especialistas, ouvem-se depoimentos dos pais de um lado e de outro. No último lance do evento, o pai de um dos “meninos” recorre a um velho chavão: “Diante disso não me resta outra saída senão perguntar: onde foi que eu errei?”

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Quantos pais não se fizeram essa pergunta angustiosamente ao longo dos séculos, mesmo sabendo que ora a resposta era tão cretinamente óbvia, ora envolvia-se num denso mistério. Antes que esse início dê falsas esperanças de que vou desvendar esse enigma apresso-me para esclarecer, não tenho competência para tanto, mas vou jogar lenha nesse fogaréu.

A idéia de que os pais são plenamente responsáveis pelo comportamento futuro de seus filhos é essencialmente materialista e portanto capenga para aqueles que como eu acreditam que somos seres bi-combustíveis – corpo e espírito.

Em minha opinião somos movidos simultaneamente pela realidade física material, mundana, e pela espiritual, transcendente, imponderável. Achar que os pais têm plena responsabilidade por cada passo no desenvolvimento desse futuro ser, é uma perspectiva arrogante, pretensiosa e capenga.

Cada pequenino ser que nasce vem com um programa de fábrica, mas vem também com programas bem mais sutis que manual nenhum conseguiu até hoje decifrar e sua inteireza. Cada ser tem uma memória que nasce com ele, uma memória que vai sendo liberada à medida em que ele vai se desenvolvendo e terá de lidar com a “realidade” concreta à sua volta.

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” Achar que os pais têm plena responsabilidade por cada passo no desenvolvimento desse futuro ser, é uma perspectiva arrogante, pretensiosa e capenga” A vida, ou o indivíduo é o resultado desse atrito entre essa memória e a realidade física que o estará circundando. Porém se por um lado não somos donos ou arquitetos do destino de nossos filhos, somos parte dessa realidade concreta que os cercam e nesse ponto podemos exercer uma influência, cujo valor na alteração dos seus destinos é tão variável que ainda não temos computador para prever todas.

O grande nó dessa questão é: nós os pais também temos os nossos próprios programas de memória para lidar. Temos também programas ocultos no fundo do baú do inconsciente que nos ligam de uma maneira ou de outra aos nossos filhos e nem sempre de forma saudável.

Soube de uma história de uma mulher que aproveitava o trabalho noturno do seu marido e corria para o motel mais próximo com seus vários namorados. Até aí “nada de mais”. Não fosse o fato de ela levar junto o filho de três anos que colocava para dormir no chão ao lado da cama. Na creche onde o menino fica durante o dia, as responsáveis perceberam um retrocesso na fala do garoto, e uma crescente tendência para o isolamento. Ela atribuiu isso a fatores psicológicos, “coisas da cabeça dele mesmo”.

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Quais as chances dessa “mãe” estar definindo o futuro de seu filho? No programa da Oprah vi um pai que maltratava sistematicamente a mãe e obrigava o filho mais velho a filmar tudo (pegou 64 anos de cadeia, justamente por causa das fitas). Será que esse pai e essa mãe não selaram o destino desses meninos?

Difícil afirmar que sim ou que não, e em que sentido esse destino poderá ser alterado. Mas algumas respostas já temos. Por exemplo, sabemos que crianças institucionalizadas (criadas em orfanatos ou abrigos por toda a infância) tem 70% mais chances de se tornarem adultos disfuncionais com algum tipo de desequilíbrio psicológico. Sabemos que crianças submetidas à violência sexual em casa tem pelo menos três vezes mais chances de se tornarem adultos agressores sexuais ou com alguma perversão que os tornem sociopatas.

Mas as informações científicas não vão muito além disso, e tem uma grande variação cultural, de país para país, de uma época para outra.

Mas se nada há de garantido que os pais possam fazer para produzir seres ajustados, e saudáveis, como agir então? Calma, desesperar jamais. Se não sabemos os caminhos das pedras das ações positivas pelo menos sabemos com alto grau de certeza as ações negativas que causam desequilíbrios nos seres aparentemente saudáveis. É a lista do não.

Tratar os filhos com agressividade, violência física e moral.

Vitimar as crianças através de violência ou assedio sexual.

Privá-las de espaço para que manifestem a sua opinião. Pais extremamente autoritários, despóticos, produzem em geral seres problemáticos.

Pais ausentes, indiferentes, ou que apresentem distúrbios que os afastem de um convívio mais afetuoso com seus filhos. Pais alcoólatras, drogados, doentes mentais crônicos, são exemplos desse distanciamento conjuntural.

Pais superpermissivos, ou incapazes de educar colocando limites, e estabelecendo uma disciplina. Assisti a um programa onde um menino de cinco anos espancava a mãe que confessava não saber o que fazer. Depois dos surtos de ira do garoto, ela simplesmente ia até lá e arrumava toda a bagunça que ele havia feito.

Pais cuja ignorância radical os levem a uma completa falta de conhecimento e competência para lidar com crianças, colocando suas vidas frágeis em risco e comprometendo seu futuro.

Pais com comportamento etnocêntrico. Fanáticos em geral, que vão criar os filhos tornando-os as primeiras vítimas de seu fanatismo, seja religioso, político ou social. Pais anti-semitas irão tirar todas as chances de seus filhos desenvolverem uma visão própria sobre sua relação com os judeus. Não é uma regra absoluta, mas em geral “filho de peixe peixinho é.”

Pais infelizes crônicos, frustrados, com um pesado passivo familiar, eles mesmos necessitariam de uma superesforço para não determinar o destino infelicitante de seus filhos.

A grande ironia desse esquema, é que mesmo pais que não se encontram nessas categorias, não têm a garantia por escrita dos céus de que seus filhos não se degenerarão, ou que serão pessoas felizes e socialmente úteis (ou pelo menos inofensivas).

Estamos vivendo um fim de uma era de liberalismo paternal. Acredito que num futuro próximo, ter filhos não será um ato de livre escolha do cidadão (como de certa forma já não o é na China por outros motivos). O estado vai ser o árbitro dessa decisão. Nossos descendentes ficarão chocados quando lerem nos livros de história que antigamente qualquer um podia gerar filhos, e na quantidade que “quisesse”. O que não tivemos a capacidade de estabelecer pela sabedoria, o será sem dúvida pelo arbítrio. Mesmo assim esses filhos tão selecionados podem não resistir à tentação de espancar uma indefesa empregada doméstica.