Como compreender e abarcar conteúdos da sombra?

por Aurea Caetano

Ítalo Calvino, importante escritor italiano, narra em um livro chamado “Nossos Antepassados” a fábula sobre “O Visconde Partido ao meio”. Este personagem teria sido partido ao meio em uma batalha e apenas sua parte boa teria retornado à vila onde vivia.

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No relato, o Visconde, em seu aspecto positivo, faz inúmeras “boas” intervenções ao caminhar pelas redondezas; ações essas que vão culminar em uma unilateralidade exagerada, positiva, mas mesmo assim, parcial.  Os habitantes do lugar, embora a princípio muito satisfeitos com as boas ações do Visconde começam a se cansar de ter todas as suas necessidades ou problemas resolvidos. Muitas vezes antes mesmo de terem tempo de expressar ou lidar com uma questão o Visconde já havia aparecido e resolvido o problema (antes até de ser percebido como tal pela outra pessoa).

Os habitantes do vilarejo começam a se sentir incomodados por essa atuação e se percebem felizes quando coisas ruins começam a acontecer, também de forma aleatória. Não demoram a perceber que a parte ruim do Visconde havia voltado da guerra e estava também, por aí, se manifestando.  Contando aqui o final do conto, a saída encontrada pela população foi costurar as duas partes do Visconde e assim devolver ao personagem sua inteireza. Podem, assim, estabelecer um relacionamento   com o personagem agora inteiro, constituído tanto pela parte positiva quanto pela negativa.

E o que quero dizer com isso? Que unilateralidade é sempre muito chata e pretenciosa; e mesmo a identificação com aspectos positivos pode ser negativa. Afinal, quem de nós não tem “um irmão meio zarolho… ou calcinha um pouco velha”? (Ciranda da Bailarina, Edu Lobo).

Não levar em conta a existência de aspectos negativos, é ignorar a tridimensionalidade de nosso ser, é ser regido de forma unilateral apenas pelos aspectos conhecidos e “bem avaliados” por nós e pelos outros.

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Para compreender e abarcar conteúdos da sombra há que se estar atentos a tudo aquilo que há de difícil em nós, ao que não conseguimos aceitar, ao que nós é mais estranho e desconhecido. É importante lançar luz a nossas dificuldades, nossos temores, nossas invejas e também nossos pudores. Estes aspectos podem nos indicar o caminho a trilhar para tentar unir as polaridades cindidas ou ao menos estabelecer pontes entre vários aspectos de nosso ser.