Ter um filho pode “salvar um casamento”?

por Regina Wielenska

No consultório, e fora dele, já ouvi histórias que são variações do relato que se segue:

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“Casei com Marcos muito nova, namorávamos  desde o primeiro ano do ensino médio e um pouco antes de nos formarmos fiquei grávida.  Decidimos casar, nossas famílias diziam que era a coisa certa a fazer. Adiamos o plano de continuar os estudos, meu marido foi trabalhar na oficina mecânica do pai e fez uns cursos noturnos na área, pra se certificar. Na gravidez não consegui emprego, passei muito mal e quando nossa filha estava com seis meses consegui emprego de recepcionista. Minha mãe e sogra faziam revezamento pra cuidarem da nenê. Foi muito duro eu me separar da pequena. Mas precisávamos do dinheiro.

Eu e ele tínhamos uma vida  corrida demais, trabalhávamos, chegávamos cansados em casa (meu marido vinha por volta das dez e meia, depois das aulas) e tínhamos que dar conta da bebê, comer, tomar banho e acordar cedo no dia seguinte. Os fins de semana pareciam voar. Com poucos recursos, ficávamos em casa ou visitávamos os parentes e a pracinha perto de casa.

Por um tempo eu tinha pouca força pra pensar em sexo, meu desejo estava menor, acho que a exaustão e preocupações atrapalhavam. Meu marido inicialmente parecia entender, mas isso durou pouco, logo ele passou a reclamar, dizia que eu só pensava na bebê, no trabalho, na casa e que ele parecia estar em último lugar nas minhas prioridades. Eu me sentia péssima, fazia tempo que não havia entre nós um clima de namoro, risada solta, carinho, sonhar juntos, essas coisas boas de antes. Fomos levando a vida. Descobri que ele saiu com outras, vi no celular, umas amigas me deram conselhos, teve quem o viu tomando cerveja perto da oficina com uma cliente. Isso foi o que ele disse quando perguntei quem era ela. Engoli em seco. Ruim assim, mas pior seria me separar, não queria aquele fracasso estampado na minha cara.

Nem sei mais como foi, mas voltei a ter sexo com ele. Achei que isso evitaria mais namoricos. Ele não punha camisinha, eu não tomava pílula, pra mim mesma eu dizia que achava que não ia engravidar. Mas era mentira. Um pedaço de mim achava que se ele e eu fizéssemos um menino, ele ia ficar obcecado pelo guri e a gente reatava de vez. Achei um milagre, tipo sinal dos céus,  quando o obstetra colocou o João Carlos nos meus braços na sala de parto. Era minha esperança de que aquele apego voltaria.

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As semanas passaram, ele se empolgou com o menino, mas tudo parecia uma reprise do que aconteceu no outro parto. Eu cansada, agora com duas crianças, na licença-maternidade, meio deprimida. Não quis remédio pra isso porque amamentava, mesmo o médico insistindo que o remédio seria seguro. O tempo me mostrou que de diferente surgiu o interesse do meu marido em ensinar futebol pro filho, ensinar a andar de bicicleta, subir em árvore. A filha ele exibia pros amigos, como uma boneca, levava pro parquinho, mas não fazia muito mais além disso. Eu e ele? Desconectados, só falávamos de coisinhas do dia a dia, a intimidade dos sentimentos, do sexo, se é que existiu, não acontecia mais.

Quando nosso menino chegou aos cinco anos, decidimos nos separar. Ele casou com outra dois anos depois. Eu estou aqui, trabalhando e cuidando das crianças na maior parte do tempo, ele leva pra passear, ou na casa da mãe dele e ficam todos lá. A pensão alimentícia ele paga, não posso reclamar.

Não sei até hoje se a gravidez teria mesmo sido razão suficiente pra marcarmos casamento. Só tenho certeza de uma coisa: amo muito as duas crianças, mas fui inocente quando me iludi com a coisa de que um novo  filho resgataria o amor conjugal perdido. Laço rompido tem pouca chance de ser remendado, não seria o pequeno quem poderia nos salvar daquele buraco…”.

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A história sofrida, ainda que ficcional e sintetizando muitas narrativas similares, é autoexplicativa. O amor pelos filhos não é capaz de preencher o espaço de conexão emocional entre os membros do casal. Um casal pode permanecer desconectado e cohabitando, com fachada de família de propaganda de margarina. Muitos optam por isso, e os motivos tendem a oscilar entre manter o dinheiro no próprio bolso, o peso de regras morais ou religiosas hipócritas e o medo de se separar e abraçar o desconhecido.

Separar não assegura felicidade. Tampouco ter filho com motivos espúrios. Apenas isso posso afirmar. O importante é que jovens e adultos aprendam a observar as razões de seus comportamentos, que avaliem antecipadamente prováveis consequências, que coloquem na balança prós e contras, com honestidade, clareza de seus valores íntimos, disposição para abraçar decisões difíceis quando elas forem as menos danosas, ou mais sábias.