Bastar-se a si mesmo

por Monica Aiub

Ao estudar as correntes helenísticas, deparamo-nos com diferentes movimentos: cínicos, céticos, epicureus, estoicos, ecléticos… Um elemento comum a várias dessas correntes, que surgiram e se desenvolveram na Antiguidade, é a ideia de autarquia, traduzida por “bastar-se a si mesmo”. A princípio, lembra-nos um ideal contemporâneo que, talvez, pudéssemos apontar como herança desses pensadores, mas que, na história, recebeu outras conotações.

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Naquele contexto, constituído após a expedição de Alexandre à Grécia, as chamadas monarquias helenísticas mudaram o status do antigo cidadão para súdito. Em outras palavras, o cidadão ateniense, que antes estava envolvido com as questões políticas, que podia participar ativamente nas decisões sobre os rumos da cidade num regime democrático, passa a ser súdito, perdendo o direito à participação política. É comum, neste período, a observação de manifestações de aversão às questões políticas. A preocupação central passa a ser com o modo de viver do indivíduo e sua busca pela felicidade. O que é a vida feliz e como alcançá-la é tema de diferentes pensadores e escolas.

Se descontextualizarmos as questões que originaram estas ideias, poderíamos considerar os discursos sobre a vida feliz como extremamente atuais, tratando de questões nossas e, por vezes, até compatíveis com nossas formas de compreensão da existência. Muitos são os que leem fragmentos desses pensadores como lições, como dicas para o bem viver, como leem livros de autoajuda. Mas se contextualizarmos os escritos na história, em questões, dificuldades e modos de viver daquela época, verificaremos que se trata de diferentes questões.

O lema “bastar-se a si mesmo”, por exemplo, não significava autossuficiência como muitos compreendem no sentido contemporâneo, mas a observação daquilo que realmente é natural e necessário, para que cada um pudesse ampliar seus graus de liberdade, não precisando submeter-se ao domínio de outros para atender necessidades criadas artificialmente.

O que realmente necessitamos para viver? Quantas vezes sofremos, nos desesperamos por coisas que não nos são, de fato, necessárias? Quantas vezes nos submetemos a uma situação que nos   causa infelicidade e sofrimento, porque julgamos não conseguir viver sem algo?

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Por outro lado, o “bastar-se a si mesmo” é, muitas vezes, hoje, significado como o isolar-se, o não precisar de ninguém para compartilhar a vida, as questões, com o viver só. É possível, ao ser humano, viver isoladamente? Bastar-se a si?

Depender

Algumas pessoas chegam ao consultório de filosofia muito entristecidas, considerando-se incapazes, porque dependem de um terceiro, quando, na verdade, gostariam de ser totalmente independentes. Ao estudarmos o significado do que ela denominou “depender”, percebemos, em alguns casos, não se tratar de uma relação de dependência, mas de uma necessidade humana de convívio, de vida em sociedade, de partilha com o outro. Em outros casos, observamos a limitação de seus graus de liberdade por ter se submetido à vontade de um terceiro, por viver de modo a violentar a si mesma, simplesmente por não acreditar na possibilidade de uma forma diferente de viver.

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Há muitas e diferentes formas de viver, de lidar com os problemas. E tantas outras ainda podem ser criadas. Mas para que consigamos vislumbrar tais formas, precisamos compreender os contextos nos quais estamos inseridos, as ferramentas que temos e como podemos utilizá-las, ou ainda, as ferramentas que podemos criar e construir. Fazer isso isoladamente torna a tarefa muito mais difícil. Pensar junto com o outro pode nos auxiliar a encontrar ou construir caminhos, desde que ambos estejam dispostos a investigar, a ir além dos conceitos prévios que possuem sobre a vida e o mundo no qual vivem.

Quando nos prendemos a tais conceitos prévios, limitamos nosso existir à reprodução dos padrões vigentes. Quando nos permitimos olhar para além de tais conceitos, podemos descobrir ou criar formas diferentes.

Se retomarmos, agora, a questão do contexto helenístico, pontuada inicialmente, da passagem do cidadão ao súdito e a subsequente aversão às questões políticas, podemos apontar alguns elementos interessantes. No que se refere à aversão às questões políticas observada em nossa época, diferentemente daquele contexto no qual a democracia foi substituída pelas monarquias, vivemos, hoje, numa democracia, e nada nos impede de conhecer, pensar e participar das decisões.  Ao contrário, é parte de nosso dever como cidadãos. Contudo, quanto mais ampliamos nossa compreensão do que se passa de fato em nosso país e no mundo, conhecendo não apenas o funcionamento, mas o que o origina e permite sua atuação desta ou daquela forma, mais elementos teremos para pensar e criar formas diferentes, mais compatíveis com nossas reais necessidades. Daí a importância de nos interessarmos pelas questões políticas, mas também daí a replicação da ideia de aversão à política.

Quais são nossas reais necessidades?

Pensamos isso considerando nossa vida individual ou a vida em sociedade?

Pensamos isso a partir de nossos referenciais ou considerando diferentes perspectivas?

Que tipo de saber necessitaríamos para responder esta questão?

Que tipo de organização poderíamos ter, em nossos grupos, comunidades, cidades, estados, países que nos permitiria garantir não apenas a nós, mas a todos, o que, de fato, é necessário?

Estas não são questões de um indivíduo que “basta a si mesmo”, mas de um cidadão que vive e convive, que se preocupa não apenas consigo e faz sua parte, mas possui um olhar capaz de incluir o outro em suas preocupações e fazeres.